Por José Eduardo Fávaro
Um paciente (homem, 43 anos, dependente químico) chega ao consultório sorridente, após 19 dias sem fazer uso da cocaína, sem apresentar agitação, pupilas dilatadas ou agressividade... e que são condizentes com sua aparência, conduta e verbalização. Conta que está frequentando as reuniões da igreja e de um curso para adictos e está determinado a parar o seu vício.
Tem um discurso firme e repete seguidas vezes que quer deixar de usar a droga.
A analista se engaja neste comprometimento e lhe informa que está feliz em saber da sua decisão, mas que os passos da “Roda da Dependência e Mudança” são muito difíceis de serem seguidos e que precisam de muita força e dedicação. E pergunta ao paciente se ele conhece todos esses passos.
Há uma pequena conversa entre ambos sobre o assunto [...]
Segundo a analista, o paciente demonstra muita ansiedade durante a análise. Sua fala, apesar de sempre repetir que está decidido a parar o uso da droga, demonstra períodos de indecisão, incertezas, insegurança e desequilíbrio, pontos-chaves para o processo de elaboração como um todo.
O paciente também conta que tem dificuldades de relacionamento com outras pessoas; que é muito agressivo e de gênio forte e dominador; que não aceita opiniões diferentes das suas; que prefere ficar isolado a ir a festas e lugares de badalações. Sente-se pouco amado e acha que as pessoas o desprezam por seu jeito isolado e pouco comunicativo.
A analista continua dando suporte a estes momentos depressivos com uso de termos muito técnicos, explicando que ele precisa de um “colo e carinho de mãe”... que ele precisa muito do “seio da mãe”, já que isto lhe foi negado na infância e agora ele quer possuir à força, pois lhe foi negado... Que ele usa a cocaína como um objeto transicional- ou uma chupeta- pois, quando lhe falta algo (ou seja, o leite ou o seio representando o amor da mãe), ele vai buscar este conforto nas drogas [...] e continua fazendo estas analogias técnicas para confortar a ansiedade transferida pelo paciente.
O paciente, por sua vez, se diz muito teimoso e quer tudo como do seu jeito. Descreve algumas passagens cotidianas, deixando claro a interferência da droga no processo cognitivo e tomada de suas decisões, dificultando o relacionamento com o outro. Nos relatos feitos, é possível observar que as decisões erradas, algumas vezes precipitadas e exageradas devido a presença da droga, produzem resultados desastrosos e que mais tarde geram certo remorso e arrependimento no paciente, fazendo com que esta dor insuportável o leve novamente ao uso da droga como mecanismo de defesa, num ciclo interminável...
Assim termina a sessão.
Através da transcrição deste material e tão somente daquilo que se pode observar e detectar do que teria ocorrido dentro do setting, evitando ao máximo sair deste lugar, tentarei traçar alguns paralelos com os artigos estudados dos autores da escola pós-Kleiniana, citando suas semelhanças e/ou divergências, em termos de transferência e contratransferência que podem ter ocorrido entre analista-paciente.
Ao começar a falar de todo o processo de recuperação de adictos, “A Roda da Dependência e Mudança”, a analista pode ter despertado no paciente uma ansiedade depressiva, inconsciente e, como uma defesa do ego, o paciente passa a se proteger desta ansiedade transferindo estes sentimentos para a própria analista, através da projeção, fazendo-se de coitado, vítima, dizendo-se mal-amado... querendo reparar a tudo e a todos. Percebemos que ele repete muitas vezes que está melhorando, que quer “sair desta”, que quer “se curar”- típicos da reparação depressiva, que, a meu ver, podem ser um resultado da própria interpretação da analista. Baseado na Ansiedade Depressiva na Esquizofrenia de Hanna Segal (1956)
Embora NA sessão não tenha aparecido nenhum indício de uma parte do SELF não-colaborativa ou sabotadora, gostaria de apontar a importância deste ponto na análise deste paciente especificamente, já que no caso de adictos, há um índice muito grande de falso SELF trabalhando para ocultar ou enganar o analista, no discurso de que “tudo está bem”. É importante encontrar um modo de entrar em contato com o verdadeiro SELF, deixando o paciente falar mais, e através da livre associação, sem quebras em seu desenvolvimento. A meu ver, no discurso e desenvolvimento da fala, o paciente não nos fornece fatos concretos de que está realmente melhor (exceto pelas condições físicas que apenas a analista pode perceber visualmente). O discurso é ainda muito carregado de dúvidas, insegurança, varia muito de posições PS-PD, demonstrando-se pouco integrado. Os constantes cortes e intervenções na livre associação não nos permitem melhor avaliação do verdadeiro SELF, que a meu ver, é uma questão-chave nos casos de adicção. Para isso baseio-me no artigo “Paciente de difícil acesso de Betty Joseph (1975).
A maneira como a analista tenta resolver o problema do paciente, dando-lhe conselhos e informações técnicas, demonstra uma contratransferência que mexe com ela própria: o seu próprio sofrimento em pensar ser uma adicta e estar envolvida no mundo das drogas. A situação total, os fatos cotidianos transferidos pelo paciente são imediatamente incorporados e identificados pela analista. Instala-se na sessão um conluio de angústias e fortes emoções, onde a analista “deseja” o tempo todo confortar e diminuir o sofrimento do paciente, através de seu discurso de mestre. Situação Total de Betty Joseph (1985).
O paciente, ao relatar que tem relacionamento muito difícil, que não se sente amado, que é isolado e por isso faz uso das drogas, parece estar usando-se de um subterfúgio de “coitadinho”, ou de alguém digno de pena, a quem a analista deve cuidar e proteger. Ao utiliza-se deste mecanismo de defesa, o paciente estaria idealizando uma analista “todo-poderosa”, onipotente, onisciente e colocando-se numa posição de pouca valia e inferiorizado, revelando uma profunda inveja inconsciente; um desejo de possuir suas habilidades e seu conhecimento; de estar na sua posição. Ela teria tudo e ele nada... E ainda mais: como sabemos, pela transferência, ele estaria usando a analista como o objeto de transferência do seu amor pela mãe; da inveja da mãe. Baseado em “A Inveja Cotidiana”, de Betty Joseph (1985).
O paciente chega ao consultório sorridente, 19 dias após deixar o uso da cocaína [...], demonstrando estar em um ponto de Equilíbrio Emocional. Minutos mais tarde, durante sua associação livre, começa a relatar que está preocupado, não sabe se vai conseguir, que está ansioso com o que vai acontecer etc, etc, revelando contrariedade. Nitidamente mudando novamente da depressiva para a posição esquizoparanóide. Nos casos de adicção, sabemos que há um medo muito grande de mudança e portanto, os shifts devem ocorrer inúmeras vezes até que o processo analítico tenha (se tiver), um avanço na mudança psíquica. “Shifts e Processo Psicanalítico” de Betty Joseph (1986).
Relações de Objeto na Prática Clínica - Betty Joseph (1988): de acordo com este texto, Betty Joseph nos ensina que o analista em sua comunicação com o paciente acaba introjetando objetos de identificação, alimentando seu próprio ego. O analista, contudo, deve ser capaz de: controlar e conter as projeções feitas pelo paciente; saber que elas existem apenas em fantasia e não devem afetar emocionalmente o analista. No caso em questão, não é possível saber se o relato é uma fantasia ou fato real. Mas podemos dizer com certeza que a transferência afetou emocionalmente a analista, que tentou confortar emocionalmente o paciente com palavras de carinho, aceitando as projeções feitas por ele, de sofredor, coitado, etc. Havendo uma identificação dela com ele e não uma “posição de observadora e de terceira pessoa”.
Nota-se também que houve perda da neutralidade benevolente, onde o analista estaria apenas preocupado com o bem-estar de seu paciente sem se envolver emocionalmente em seus conflitos. Houve tendência a funções reparadora e parental, de acordo com o texto de Roger Money-Kyrle (1955) - Contratransferência normal e seus desvios.
No trabalho de Irma Pick (1985) - Elaboração na contratransferência, aprendemos que a elaboração é algo que se teme pois é extremamente doloroso, tanto para o analista quanto para o paciente. No caso de adictos, é preciso verificar se o discurso condiz com os atos do paciente e se não há um falso SELF atuando. Também é preciso que a analista se mantenha mais neutra, permitindo uma melhor livre associação, sem discursos técnicos, tentando explicar os fatos nem confortando o paciente em momentos depressivos. Há indícios de que na contratransferência, por identificação, a analista participe de um conluio com o paciente, dividindo experiências emocionais.
Do texto de Edna o´Shaugnessy (1987) - O complexo de Édipo invisível: se analisarmos a fundo as questões emocionais do paciente, talvez possamos encontrar indícios de um complexo de Édipo mal resolvido, muito arcaico, do tipo explorado por Edna em seu artigo de 1987. O paciente, ao relatar difícil relacionamento com os outros, muita agressividade, pode estar escondendo uma inveja e dependência a serem estudados mais a fundo. Na minha opinião, como futuro analista, optaria por este caminho: trabalhar esta pulsão de vida recalcada, isolada em sua concha narcísica, estabelecendo aos poucos a possibilidade de relacionamentos estáveis com o outro e o mundo externo, impossíveis no Édipo arcaico criado em sua fantasia onde a existência de um terceiro tornou-se impossível. A hipótese seria que, o difícil convívio social e o isolamento, reforçados pela pulsão de morte (ódio e inveja), quebrando a relação entre o indivíduo e o mundo externo, seria reforçado e recompensado pelo uso da droga –a libido é dirigida a si mesmo. No entanto, esta libido reinvestida em si mesmo e recalcada, acabaria criando tensões tão fortes no interior do próprio corpo que, em algum momento precisaria romper a barreira da concha narcísica e buscar o prazer pelo objeto externo. Porém, a total falta de manejo com os objetos externos (dado o seu tipo de relação narcísica) acabaria gerando mais angústias e frustração no ciclo vicioso.