Por Elsa Oliveira Dias
O estudo visa explicitar o significado específico que Winnicott atribui aos conceitos de incorporação e de introjeção, diferente daquele dado pela teoria psicanalítica tradicional. O trabalho mostra, ainda, que a distinção entre esses conceitos, formulada à luz da ideia de amadurecimento e derivada da distinção mais ampla entre psique-soma e mente – é altamente elucidativa na compreensão de falhas que caracterizam as patologias primitivas.
Apresenta-se, em seguida, a formulação winnicottiana sobre uma modalidade patológica de introjeção, o que leva a decorrências importantes para a prática clínica, sobretudo no que se refere a determinadas patologias como a depressão reativa.
Palavras-chave: Winnicott, Psique, Mente, Incorporação, Introjeção, Mundo interno, Realidade psíquica pessoal.
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ABSTRACT
The objective of this study is to explain the specific meaning that Winnicott gives to the concepts of incorporation and introjection different from the meaning given by the traditional psychoanalytic theory. This study also shows that the difference between these concepts – formulated in the light of maturation and resulting from the difference between psyche-soma and mind ndash; is extremely important to understand the failures that characterize the primitive pathologies. This is followed by the Winnicottian formulation on an introjection of a pathological nature leading to significant results in the clinical practice especially in regard to specific pathologies such as the reactive depression.
Key-words: Winnicott, Psyche, Mind, Incorporation, Introjection, Internal world, Personal psychic reality.
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INTRODUÇÃO
Tratarei, neste estudo, dos conceitos de incorporação e de introjeção na obra de Winnicott, e, em particular, da distinção entre eles, formulada pelo autor.** Essa distinção é uma das derivações de outra, mais ampla, entre psique e mente, uma das mais férteis contribuições de seu pensamento ao estudo da natureza humana e à mudança paradigmática operada por sua teoria do amadurecimento. Meu propósito não é tanto embrenhar-me na análise desses conceitos, mas abrir o campo conceitual que me permitirá explicitar a importante noção de incorporação na psicanálise winnicottiana e expor, além do conceito mais comum de introjeção, como mecanismo mental, a introjeção mágica, que é uma formação defensiva cuja consideração pode auxiliar na compreensão e no manejo de certas formas de transferência.
Talvez seja útil retomar brevemente os conceitos básicos – em especial a distinção entre psique e mente, formulada por Winnicott – sobre o qual a presente questão ganha relevo. Ao se considerar o indivíduo total, afirma o autor, deve-se levar em conta não o corpo e a mente, como tradicionalmente se estabeleceu pela herança cartesiana, mas o soma e a psique. No resumo do artigo "A mente e sua relação com o psique-soma", diz Winnicott:
É lógico contrapor soma e psique e, portanto, contrapor o desenvolvimento emocional ao desenvolvimento corporal de um indivíduo. Não é lógico, porém, opor o mental ao físico, pois não são da mesma ordem. Os fenômenos mentais são complicações de importância variável na continuidade de ser do psique-soma, em termos do que adicionam ao si-mesmo individual" (1954a/2000, p. 68).
Como se vê, Winnicott resguarda a dualidade psicossomática, pois distingue o funcionamento psíquico do funcionamento somático, acentuando ainda o sentido e o valor do hífen que separa as duas palavras da expressão (psycho-somatic), mas convém ressaltar que psique e soma são, pela sua própria natureza e pela tendência ao amadurecimento, intimamente interligados, com tendência a operar conjuntamente numa existência que é psicossomática.
O soma é o corpo vivo, que é um aspecto do "estar vivo" do indivíduo, ao qual são inerentes a respiração, a temperatura, a motilidade e, igualmente, a vitalidade dos tecidos. Sendo físico, certamente, o corpo vivo não deve ser entendido de uma perspectiva meramente orgânica, fisiológica ou anatômica, pois se trata do corpo de alguém que respira, tem fome, busca algo, mama, chora, se assusta, ou seja, um corpo que, além de vivo, é pessoal. A psique, diz o autor, é tudo o que não é o soma, incluída aí a mente cujo funcionamento começa em período posterior e é entendida como um modo especializado do funcionamento psíquico para as funções intelectuais. A mais primitiva função da psique, que tem início já na vida intra-uterina e que perdura pelo resto da vida a despeito das aquisições que venham a ser feitas, é a "elaboração imaginativa das partes, sentimentos e funções somáticas, isto é, do estar fisicamente vivo (phisical aliveness)" (1958a/2000, p. 333). O funcionamento psíquico inicial é, portanto, relativo ao soma, pois seja o que for que esteja sendo experienciado pelo bebê, tudo é experienciado no corpo ou através dele e está sendo personalizado pela elaboração imaginativa. Esta, diz o autor, "é uma forma rudimentar do que mais tarde chamaremos de imaginação" (1993h/1993, p. 21).1 Não se trata, ainda, da fantasia do corpo que virá depois, pois esta é eminentemente representacional e depende de um funcionamento mental que ainda não foi ativado nesse momento inicial. A elaboração imaginativa é, bem mais, o que provê de sentido o que seria, de uma perspectiva puramente organicista, uma mera sensação; do ponto de vista da experiência humana, contudo, há sempre um sentido, mesmo que altamente incipiente, tal como estar protegido ou não, sentir-se ou não seguro, deixar-se ir ou ser interrompido, sentir urgência, sentir-se solto no vazio, ter algo entrando, ter contato ou não etc.2 Em Winnicott, o corpo é, sobretudo, um campo de experiências psicossomáticas pessoais e não um campo simbólico. No artigo "O 'animal humano'", Loparic (2000) assinala que o ponto central para o entendimento do conceito de elaboração imaginativa é essa "dação de sentido", que é anterior às operações mentais de representação, verbalização e simbolização, operações para as quais o bebê é ainda muito imaturo. Referindo-se ao fato de que uma das mais importantes integrações do ser humano em desenvolvimento é "um arranjo operacional satisfatório entre a psique e o soma", Winnicott acrescenta: "Isso começa anteriormente à época em que é necessário adicionar os conceitos de intelecto e verbalização" (1971d/1994, p. 209).3
Onde é que fica a mente nisso tudo? Diz o autor: "A parceira do soma na valsa da vida não é a mente" (1969f/1997, p. 221). Esta, esclarece Winnicott em Natureza humana, "constitui uma ordem à parte e deve ser considerada como um modo especializado do funcionamento do psique-soma" (1988/1990, p. 29). Quando os cuidados ambientais são satisfatórios e favorecem a integração psicossomática, a mente tem início naturalmente num momento um pouco mais avançado do amadurecimento inicial, mais precisamente na passagem da dependência absoluta para a relativa; nesse caso, ela não constitui uma entidade em si mesma4, mas é um desdobramento do psique-soma, um modo específico de este funcionar, um "ornamento", dirá Winnicott, da crescente coesão psicossomática.
A psique é, portanto, mais ampla e mais primitiva do que a mente; enquanto o funcionamento mental é especializado, inicialmente nas funções intelectuais de catalogação, classificação e cotejamento (cf. 1989s/1994), expandindo-se, após o alcance da identidade unitária, nos mecanismos mentais de projeção e introjeção, a psique independe de início da perceptividade e é fundamentalmente imaginativa e criativa. Se, em virtude da insegurança ambiental, o funcionamento mental é precocemente ativado, isso provoca um estado de alerta no bebê, que o impede de repousar, com a ativação de um sistema defensivo caracterizado por uma hipermentalização. Esse funcionamento mental prematuro e exacerbado é negativo, diz Winnicott, "pois deriva de um estágio demasiadamente precoce na história do indivíduo, sendo portanto patologicamente desvinculado do corpo e de suas funções bem como dos sentimentos, impulsos e sensações do ego total." (1958f/2000, p. 267). Desse estado de coisas decorre, em geral, uma incapacidade para a experiência, pois esta, para ocorrer como tal, requer a participação conjunta de psique e soma. São estes os casos em que pode se instalar no indivíduo um recurso onipresente a representações que proliferam e substituem a vida e a experiência.
É sobre o fundo dessas concepções que volto, agora, ao assunto central deste estudo. Ressalto, inicialmente, que o tema relativo à incorporação e à introjeção é pouco visado, em geral, e não chegou a ser totalmente desenvolvido por Winnicott, ao menos não explicitamente.5 Descobri, contudo, em especial no que se refere à incorporação, que este conceito é quase onipresente na obra do autor, pois, trata, em nível molecular, da maneira pela qual, na saúde, o indivíduo inicialmente dependente assimila – através da elaboração imaginativa das partes, sentimentos e funções do corpo vivo – os vários aspectos do si-mesmo psicossomático ou as qualidades incipientes de organização psicossomática que surgem das experiências de facilitação ambiental, resultando em crescente organização psicossomática, o que o torna cada vez mais autônomo e capaz de cuidar de si mesmo. Em outras palavras, a incorporação refere-se às maneiras pelas quais, devido à experiência repetida dos cuidados ambientais, o indivíduo se apropria de modos de se cuidar, de alcançar e usar objetos, de relacionar-se com a realidade externa e buscar nela o que necessita, a ponto de poder, com o tempo, dispensar o ambiente facilitador real.6
Enquanto para a psicanálise tradicional, que é uma teoria da mente, o intercâmbio entre o sujeito e a realidade externa é pensado, desde o início, em termos da percepção que é produzida pelo sistema perceptivo do aparelho psíquico e dos mecanismos mentais de introjeção e projeção – sendo o psiquismo concebido como uma dinâmica de representações –, para Winnicott, a idéia de mecanismos mentais operando desde o início da vida é incompatível com sua formulação de todo um período do amadurecimento inicial dos seres humanos "que precede a objetividade e a perceptividade" (1969c/1975 ou 1989, p. 203) – que é pré-representacional, pré-verbal e pré-simbólico –, e mais, é incompatível com o conceito de criatividade primária.7
Como é, então, que o pequeno indivíduo humano se apropria do que lhe é fornecido pelo ambiente e do que, propriamente, ele se apropria? É com relação a toda essa etapa primitiva, anterior à separação entre o eu e o não-eu e ao advento pleno do funcionamento mental, que Winnicott introduz a idéia de incorporação (num sentido totalmente novo com relação ao que havia sido usado na literatura tradicional, e naturalmente, relativo às suas novas concepções); esse processo, que tem início já ao tempo da dependência absoluta, não exige nenhum trabalho mental e prossegue ao longo da vida, enquanto há saúde e o corpo permanece sendo a morada da psique. A introjeção, por sua vez, (assim como a polaridade projeção), sendo um mecanismo mental, só começa a operar num momento posterior, quando a diferença entre o que é do eu e o que é do não-eu ficar mais estabelecida. O interesse dessa distinção é assinalado por Winnicott, por exemplo, num trecho em que discorre sobre o amadurecer da criança:
Vemos o interessante processo de absorção, na criança, dos elementos do cuidado, aqueles que poderiam ser chamados de elementos do "ego auxiliar". A relação entre essa absorção do meio [aqui existe incorporação] e o processo de introjeção com o qual já estamos familiarizados gera grande interesse (Winnicott, 1965h/1988, p. 116).
A distinção entre incorporação e introjeção, e o que isso podem significar, em termos de amadurecimento, não estava clara no pensamento do autor desde o início de sua obra e foi sendo elaborada aos poucos, o que significa que, tendo eu utilizado textos de diferentes épocas, foi preciso, muitas vezes, sobretudo com relação aos textos mais iniciais, entender o que Winnicott dizia à luz de textos posteriores. Além disso, também no que se refere à incorporação e à introjeção dá-se o mesmo fenômeno que em outros casos, a saber, ele usa termos já consagrados para expressar idéias radicalmente novas, o que naturalmente dificulta o entendimento da novidade conceitual que ele propõe. Tentei, então, explicitar numa nova linguagem – e, naturalmente, à luz da totalidade de seu pensamento – o que está contido na distinção entre incorporação e introjeção.
Devo ainda mencionar que o exame desses conceitos leva a um campo conceitual relativo a dentro e fora – em particular, ao mundo interno e objeto interno e ao caráter representacional que eles encerram –, ao qual seria necessário dar maior precisão, levando em conta a obra completa, mas que não poderá ser considerado no âmbito deste estudo. Pode-se apenas adiantar que, tendo aderido a essa terminologia consagradamente kleiniana nos trabalhos mais antigos, Winnicott tentou, em especial nos artigos em que essa questão se torna aguda, corrigir essa imprecisão falando de realidade psíquica pessoal, ao invés de realidade interna.8 Um exemplo encontra-se em "O conceito de indivíduo saudável", quando, ao enunciar as três vidas que as pessoas saudáveis experienciam, Winnicott diz que a segunda delas é "a vida da realidade psíquica pessoal (às vezes chamada de interna)" (1971f/1989, p. 28). Para esclarecer um pouco mais o ponto em questão, menciono ainda um trecho da carta de Winnicott a M. Klein, de 1957, em que, comentando um trabalho de Hanna Segal, ele escreve (o que é, certamente, um recado para a própria Klein):
Aliás, acho que a Dra. Segal, de momento, não foi capaz de dar uma boa explicação para o uso que faz da palavra interno, pois se você devora a mãe, você não tem a mãe dentro de si. Se houvesse tido mais tempo, provavelmente ela teria feito uma distinção entre incorporação e introjeção mágica, que era o que ela tinha em mente, acho eu. (1987b/1990, p. 100 [itálicos meus]).
O tema leva, portanto, naturalmente, a um debate com a psicanálise tradicional, e em especial com Melanie Klein, e isso será explicitado em alguns pontos do texto. Leva, ainda – e que é, afinal, o que mais interessa a este estudo –, a um exame de aspectos da relação terapêutica pelos quais, levando em conta a necessidade específica do paciente, ela é capaz, ou não, de promover crescimento genuíno.
Rápida retrospectiva da literatura tradicional acerca dos conceitos
Os termos incorporação, introjeção (e projeção), assim como o de interiorização e o de internalização, encontram-se em toda a literatura psicanalítica tradicional – Freud, Klein, Ferenczi. Embora Freud, ao considerar os termos, explicite a diferença entre incorporação e introjeção, ele, assim como os autores cujas obras são desenvolvimentos da psicanálise freudiana, usa os dois termos no mais das vezes como sinônimos. Ele também não discrimina entre introjeção e interiorização. O conceito de identificação, que se aproxima do de introjeção, ganhou outros significados e teria que ser considerado à parte, o que não será feito no presente estudo.
a) Incorporação, introjeção e interiorização em Freud:
Freud usou o conceito de incorporação, em 1915, para designar o processo pelo qual o sujeito, de modo mais ou menos fantasmático, introduz e conserva um objeto no interior de seu corpo. Incorporar, para Freud, é um alvo pulsional, em especial no que se refere à atividade bucal e à ingestão de alimentos; não se limita, contudo, à oralidade: há incorporação pela pele, pela respiração, pela visão e pela audição; há incorporação anal uma vez que a cavidade retal é equivalente à boca, e também incorporação genital, pela retenção do pênis, por exemplo. Seja como for, é o interior do corpo que é visado, com três finalidades: 1. Dar-se prazer pela introdução de um objeto em si; 2. Destruir o objeto; 3. Assimilar as qualidades do objeto. É por esta última finalidade que a incorporação se torna a matriz, o protótipo corporal, da introjeção e da identificação.9
Foi também em 1915 que Freud adotou o conceito de introjeção, após este ter sido introduzido, na psicanálise, por Ferenczi, no texto "Introjeção e transferência", de 1909. Ferenczi usa o termo, basicamente, para fazer contraponto ao conceito de projeção, referindo-se, com ele, ao modo pelo qual o indivíduo alarga o círculo de seus interesses para fazer aí caberem os afetos livremente flutuantes. Ferenczi esclarece que,
enquanto o paranoico projeta para o exterior as emoções que se tornaram penosas, o neurótico procura incluir em sua esfera de interesses a maior parte possível do mundo exterior, fazendo dele objeto de fantasmas conscientes e inconscientes. [...] O neurótico está perpetuamente em busca de objetos de identificação, de transferência; isto significa que ele atrai tudo o que pode em sua esfera de interesses, ele os 'introjeta' (Ferenczi, 1909/1968, p. 100).
No decorrer do ensaio de Ferenczi, a acepção do termo tornou-se tão vaga que acabou por confundir-se com o de projeção.
Ao assimilar o conceito, Freud o contrapõe nitidamente ao de projeção. Isso fica explicitado mais claramente em "Pulsões e seus destinos" (1915/1989) quando, ao considerar a gênese da oposição sujeito (ego) – objeto (mundo exterior), Freud mostra que ela é correlativa à oposição prazer/ desprazer.
Diz Freud, nesse texto, que o "ego-prazer-purificado" constitui-se por uma introjeção de tudo o que é fonte de prazer e por uma projeção para fora de tudo o que é ocasião de desprazer. Em "A negação" (1925), assinala que, expressa na linguagem das pulsões mais antigas, orais, a oposição introjeção – projeção significa: quero comer aquilo ou quero cuspir aquilo. Traduzida numa expressão mais geral: quero introduzir isto em mim ou excluir isto de mim." (Freud, 1925/1989, pp. 254). Ou seja, "o ego-originário quer introjetar em si tudo o que é bom e rejeitar tudo o que é mau." (Freud, 1925/1989, pp. 254)
Em seu Vocabulaire de Psychanalyse, Laplanche e Pontalis afirmam, no que, na psicanálise, sendo o limite corporal o protótipo da separação entre interior e exterior, o processo de incorporação refere-se explicitamente a esse invólucro corporal. Já o termo 'introjeção' é mais lato: não é apenas o interior do corpo que está em causa, mas o interior do aparelho psíquico, de uma instância etc. É assim que se fala de introjeção no ego, no ideal de ego etc. (Laplanche & Pontalis, 1967, p. 209).
Quanto ao termo interiorização, que é usado com frequência por Freud, pode ter duas acepções: a) sinônimo de introjeção e b) ter um uso mais específico, a saber, a interiorização de um conflito, de uma interdição. É sobretudo neste último sentido que ele é usado por Freud: a relação de autoridade entre pai e filho é interiorizada – ou introjetada – na relação do superego com o ego. Laplanche e Pontalis elucidam: "Quando do declínio do Édipo, podemos dizer que o indivíduo introjeta a imago paterna e que interioriza o conflito de autoridade com o pai" (Laplanche & Pontalis, 1967, p. 206).
Adiantando um pouco a perspectiva de Winnicott, cito aqui uma passagem em que ele usa o conceito de introjeção, à sua maneira, para apresentar como entende a formulação freudiana relativa à formação do superego. Diz ele:
Na simplificação do complexo de Édipo, o menino introjetava o pai, respeitado e temido, e, por isso, levava com ele forças de controle baseadas no que a criança percebia e sentia em seu pai. Esta figura paterna introjetada era altamente subjetiva e colorida pela experiência da criança com figuras paternas outras além do pai verdadeiro e também por padrões culturais da família. (A palavra introjeção simplesmente significava uma aceitação mental e emocional, e este termo evitava as implicações mais funcionais da palavra incorporação) (1958o/1988, p. 22).10
Aqui já se nota que 1. Winnicott diferencia claramente entre incorporação e introjeção. 2. A introjeção é um mecanismo mental que opera num momento em que já há percepção do objeto (no caso, o pai) e de características do objeto.
b) Incorporação, introjeção e interiorização em Melanie Klein:
Pelo fato de entender que as relações iniciais já se dão com objetos externos, Melanie Klein postula a idéia de que a introjeção e seu contraponto, a projeção, estão presentes desde o início da vida e é exatamente esse um principais pontos de divergência de Winnicott com a psicanalista húngara. Num texto escrito em 1962, sobre a contribuição de Klein, ele diz: "Ela aprofundou-se mais e mais nos mecanismos mentais de seus pacientes e aplicou então seus conceitos ao bebê em crescimento. Acho que foi aí que cometeu alguns enganos, porque profundo, em psicologia, nem sempre quer dizer primitivo" (Winnicott, 1965va/1988, p. 161).
No pensamento de Klein, a noção de incorporação foi açambarcada pela de introjeção. Se a incorporação, em Freud, ainda apontava para o interior de um corpo substancial, Klein eliminou o corpo concreto e o considera tão somente em termos de mecanismos mentais e de fantasia. No Dicionário do pensamento kleiniano, consta que a incorporação, na obra da autora, refere-se
à fantasia da absorção corporal de um objeto, que é subsequentemente sentido como fisicamente presente dentro do corpo, ocupando espaço e sendo ativo lá. É a experiência que o sujeito tem de um mecanismo de defesa que é objetivamente descrito como introjeção (Hinshelwood, 1992, p. 357).
A noção de introjeção foi introduzida pela psicanalista por volta de 1926 e, ao fazê-lo, ela pôs ênfase não tanto no mecanismo, mas sim no resultado, ou seja, na presença do objeto introjetado. Esse termo, usado como antônimo para "objeto real', designa os fenômenos que surgem, segundo a autora, do temor à retaliação que configura a lei de talião (olho por olho, dente por dente): figuras interditoras, persecutórias ou retaliadoras fantasiadas e reveladas na análise da culpa precoce das crianças pequenas. À própria noção de introjeção, pertence a deformação, com relação aos objetos reais introjetados, das imagos que os representam. O protótipo desses objetos é a mãe introjetada que, por exemplo, no caso de Rita, a impede de brincar com a boneca. Diz Klein: a proibição do desejo infantil já não emanava da mãe real, mas, ao contrário, de uma mãe introjetada, cujo papel a menina desempenhava para mim de várias maneiras e que exercia sobre ela uma influência muito mais dura e cruel que a verdadeira mãe. (1926/1970, p. 182).
Do que foi dito, percebe-se que a incorporação, a não ser no sentido mais primitivo, o da "linguagem do impulso oral", tal como expresso por Freud, só tem valor conceitual, na teoria tradicional, como protótipo corporal da introjeção e da identificação.
A incorporação (ou internalização) e introjeção em Winnicott:
A distinção entre incorporação e introjeção foi formulada por Winnicott à luz do amadurecimento e em termos da natureza dos processos: a incorporação tem início nos estados mais primitivos, não envolve nenhum trabalho mental e ocorre durante as experiências instintuais excitadas. Mais: o que é incorporado não é um objeto, nem a fantasia do objeto, mas a experiência de cuidado ambiental, com a respectiva conjunção psicossomática envolvida, como se verá a seguir. A introjeção, por sua vez (assim como a sua polaridade, a projeção), é já um mecanismo mental, supõe a separação entre o eu e o não-eu e independe de a experiência envolver o corpo, estando, portanto, "mais estreitamente afins ao afeto do que ao instinto" (1971l/1975, p. 178). Assinalando sua própria contribuição e a diferença que a separa da teoria kleiniana, diz Winnicott:
Quanto ao meu próprio trabalho, [...] tentei fazer com que a palavra 'internalização' [ou incorporação] fosse usada para designar a elaboração imaginativa da função corporal, enquanto reservava 'introjeção' para o processo mágico que pode ocorrer separadamente do comer" (1989xi/1994, p. 357 [itálico meu]).11
Na saúde, tanto incorporações como introjeções são necessárias para aparelharem o indivíduo na direção da independência, ou seja, de maior autonomia. Ambos os conceitos estão referidos, em Winnicott, à formação paulatina do mundo interno, ou realidade psíquica pessoal como Winnicott prefere dizer, e à conquista da capacidade para o concernimento. Note-se, por exemplo, o que ele afirma no mesmo texto citado anteriormente e na mesma direção: É a vida instintual que determina, no bebê e na criança pequena, a construção de elementos benignos e apoiadores ou de elementos persecutórios e perturbadores na realidade psíquica interna, embora também haja lugar para introjeções que, por assim dizer, contornam o viver instintual do indivíduo" (1989xi/1994, p. 355).
É claro que o "mundo interno" não se forma de uma vez quando tem início por ocasião da separação entre eu e não-eu. As experiências que foram ocorrendo ao longo dos estágios iniciais se reúnem nesse momento em que começa a se estabelecer a fronteira entre o externo e o interno. Num texto sobre a aquisição da capacidade para o concernimento, Winnicott diz:
Já ficou claro que essa construção do mundo interno através de um sem-número de experiências instintuais teve início bem antes do estágio que agora estudamos. Bem antes dos seis meses, o bebê humano já está sendo formado pela experiências que constituem o viver da infância, experiências instintivas ou não, excitadas ou tranquilas" (1955c/2000, p. 370).
Sim, todas as experiências – excitadas ou não – são importantes na formação do "mundo interno"; as experiências de quietude, de contato corporal e de olho-no-olho com a mãe, de estar sendo seguro e embalado no colo, da facilitação ambiental na passagem dos estados excitados para os tranquilos e vice-versa, tudo isso está sendo elaborado imaginativamente e incorporado no "armazém de experiências" do eu que ainda está se constituindo. A experiência excitada, contudo, é uma ocasião toda especial para a incorporação, pois tem início num impulso instintual e criativo, o qual, em si mesmo, produz "uma convergência aglutinadora do si-mesmo como um todo" (1988/1990, p. 137); além disso, esse impulso, quando tornado real e levado ao clímax, pelo atendimento materno, ao mesmo tempo que integra e satisfaz, está também promovendo a incorporação da experiência total, que inclui, além da excitação e do uso, pleno ou não, da motilidade, a comunicação, a mutualidade, o sentimento de ser corpóreo, de ser visto pela mãe etc. Se, devido a um manejo deficiente, houver inibição do impulso instintual, a incorporação não mais ocorre e é a partir dessa dificuldade que a introjeção, começando a operar precocemente, sem base nas incorporações, tem um caráter defensivo e mágico, isto é, sem apoio na experiência. Este ponto será melhor explicitado adiante.
a) a incorporação:
Deve-se assinalar, primeiramente, que tanto o que serve de modelo para a incorporação como o que é incorporado variam conforme a fase do amadurecimento.
Na primeira e mais primitiva etapa, a mãe suficientemente boa, que é uma pessoa real e externa, é, para a criança, objeto subjetivo. O que chega ao bebê, dela, são os cuidados que ela é capaz de dispensar e o modo desses cuidados. Nesse momento, a incorporação é o processo pelo qual o bebê absorve, assimila, incorpora enfim, como aspectos do si-mesmo em sua relação com o ambiente, as experiências de bom cuidado ambiental, de boa sustentação, da acolhida da mãe às manifestações do estar vivo. O processo é basicamente somático, ou seja, envolve sempre alguma função corpórea que está envolvida numa dada experiência, sendo esta elaborada imaginativamente pela psique;12 como ocorre em especial durante a experiência excitada da amamentação, o comer é o seu modelo inicial.
Note-se que, sendo a incorporação estritamente relacionada ao corpo, não é o corpo substancial, como em Freud, que Winnicott tem em vista, mas o corpo vivo, de alguém que sente, respira, chora, busca, agarra, mama, ao mesmo tempo que se sente reunido pelos braços e pelo olhar da mãe.
Devido ao conceito de objeto subjetivo, é possível, a Winnicott, dizer que, para que haja incorporação é preciso haver uma mãe real que está lá para segurar o bebê e dar-lhe de mamar, mas também que, mesmo sendo real a mãe, não se trata, nesse início, como já foi dito, da incorporação de objetos – pois ainda não há objetos externos – nem de representações ou fantasias de objetos, nem mesmo de conflitos, mas de cuidados ambientais que estão sendo experienciados e elaborados imaginativamente no estado excitado. Neste ponto configura-se um aspecto crucial da discussão com Klein. Numa carta de 1956, a Joan Rivière, Winnicott esclarece que a comunicação com Melanie está difícil sobretudo no que se refere ao significado de "seio bom".
Diz ele então que, se se partir da existência de um "seio bom" e a da existência de um bebê, o resultado será um ataque ao seio. Mas, continua ele:
Sei muito bem que isso é verdade, e sei que é o seio bom, e não o seio mau, que o bebê morde. Não obstante, ao falarmos desse modo, estamos deixando de lado o desenvolvimento do ego do bebê e, portanto, não estamos fazendo uma formulação da infância mais inicial. O "seio bom" não é uma coisa, é o nome dado a uma técnica. É o nome dado à apresentação do seio (ou mamadeira) ao bebê, um caso por demais delicado e que só pode ser satisfatório, no início, se a mãe se encontrar num curiosíssimo estado de preocupação materna primária. A menos que, no início, ela possa identificar-se muito intimamente com seu bebê, ela não pode 'ter um seio bom', porque só possuir a coisa não quer dizer absolutamente nada para o bebê." (1987b/1990, p. 84).
Pode-se, portanto, dizer que o que o bebê incorpora, nessa etapa em que se encontra ainda misturado com a mãe, e tem momentos de integração durante a experiência excitada, é o "seio bom", lembrando que, com esse termo, Winnicott designa não um objeto, mas sim o conjunto de cuidados que são dispensados ao bebê pela mãe. Vejamos como Winnicott descreve o que se passa quando há incorporação, sem usar o termo: "Tudo o que é adaptativo ou "bom" no ambiente está sendo construído no armazém de experiências do lactente como se fosse uma qualidade do si-mesmo, indistinguível, de início (pelo lactente), do funcionamento sadio do próprio lactente" (1963d/1988, p. 91). Observe-se que o "bom" da facilitação ambiental que é incorporado não é reconhecível como tal, antecipadamente, pois o bebê, que não sabe nada sobre a existência do ambiente e sobre o benefício que irá receber, não tem como reconhecer o bem antes de viver a experiência. Se a experiência toda da amamentação for satisfatória, ela será incorporada, e se tornará indistinguível do próprio lactente, como diz Winnicott, tal como o leite vira célula. Destaco esse ponto, pois adiante haverá um aspecto importante relativo à prévia idealização do objeto, o que irá configurar a introjeção mágica. Assinalo ainda que, segundo Winnicott, o que é incorporado pelo bebê é o bom, a experiência satisfatória; se o cuidado é insatisfatório, ele reage, ou seja, não incorpora e fica sem, desprovido, além de traumatizado. O que se nota, nos psicóticos, por exemplo, é que, por ter falhado o processo de incorporação, com tudo o que isso envolve e implica, eles não sabem de si e, portanto, não sabem de suas necessidades nem o que fazer para satisfazê-las.
Durante os estágios iniciais, algo mais está ocorrendo em termos de incorporação, a par de um crescente conhecimento sobre as próprias necessidades e o que buscar para satisfazê-las: é a apropriação gradual, pelo bebê das habilidades básicas de usar o próprio corpo e os objetos, um crescente "conhecimento" sobre sua força, seus limites e sobre modos de operar no mundo – alcançar algo, pegar, agarrar, aferrar-se ao seio, gritar etc – habilidades cuja experiência, sistematicamente facilitada pela mãe, vão sendo incorporadas.
Alguns exemplos de incorporação, do início e ao longo da vida, podem esclarecer. 1. O bebê faz o gesto de tentar alcançar algo, um chocalho, por exemplo. A mãe percebe o movimento e implementa o gesto: alavanca o corpo do bebê, faz com que sua mãozinha chegue ao objeto e ele agarra o objeto. A possibilidade de alcançar objetos, juntamente com a força e a direção imprimida ao movimento, juntamente com a possibilidade de comunicar o objetivo, tudo está sendo incorporado de modo a tornar-se uma potência e uma habilidade do próprio bebê, o que leva, naturalmente, com o tempo, uma crescente organização psicossomática. Além disso, a experiência, que envolve a pessoa total do bebê, teve começo, meio e fim, o que implica incorporação do tempo das coisas, dos acontecimentos e, inclusive, do cansaço psicossomático.