Por Vladimir Pinheiro Safatle
RESUMO:
Texto inédito de Vladimir Safatle que faz a defesa da psicanálise a partir de dois ensaios centrais de Freud, lançados em nova tradução, e de obra que nega a eficácia da teoria freudiana. Em vez das certezas prometidas pela neurociência, Freud propôs um regime de "suspeita de si" para o alívio do sofrimento.
VLADIMIR SAFATLE
O FILÓSOFO FRANCÊS Gilles Deleuze dizia que não há nada pior do que livros escritos contra alguém. Pois, nesses casos, só temos duas alternativas. Ou o autor que queremos refutar é irrelevante e, por essa razão, não mereceria um livro, ou é como todo grande autor, ou seja, alguém que procura avançar entre erros e acertos; alguém que, como dizia Jean-Paul Sartre, pensa contra si mesmo.
Infelizmente, parece que tendemos a esquecer a lição de Deleuze, sobretudo quando o autor em questão é alguém que moldou a maneira como as sociedades contemporâneas ocidentais compreendem a vida psíquica e seus impasses. Ou seja, quando esse autor é Sigmund Freud.
ATAQUES VIRULENTOS
Não é difícil entender por que o pensamento de Freud é objeto periódico de ataques virulentos. Definições sobre saúde, normalidade e sofrimento psíquico estão longe de ser imunes a conflitos: são aspectos de um embate social a respeito do que entendemos por "vida mutilada".
Um trabalho epistemológico digno desse nome é capaz de mostrar como a gênese de conceitos clínicos centrais depende, em larga medida, de valores que se originam fora da clínica e que a clínica toma emprestados dos campos da política, da estética, da teoria social, da moral, entre outros. Por isso, os embates em torno dos modelos de intervenção clínica diante do sofrimento psíquico acabam sendo embates a respeito de modelos de vida que procuram ter forte peso normativo.
A maneira como, nos últimos 50 anos, o homossexualismo deixou de ser visto como uma parafilia (designação atual das perversões) ilustra a permeabilidade de nossos critérios de normalidade psíquica a valores socioculturais.
Diante das querelas em torno de Freud, vale a pena ter essas questões em mente.
Em geral, tais querelas se fazem passar por problemas "técnicos" a respeito de padrões de eficácia clínica. No entanto, muitas vezes são animadas por debates não explícitos sobre formas de vida e de individualidade.
LIVRO NEGRO
Um exemplo paradigmático dessa estratégia é "O Livro Negro da Psicanálise - Viver e Pensar Melhor sem Freud" [org. Catherine Meyer, trad. Maria Beatriz de Medina e Simone Perelson, Civilização Brasileira, 644 págs. R$, 64,90]. Lançado na França em 2005, o livro chega ao Brasil com apenas 23 dos 40 artigos originais.
Congregando filósofos, psiquiatras, ex-psicanalistas, biógrafos de Marilyn Monroe, jornalistas investigativos (?), sexólogos e até um professor "reconhecido por seus pares como uma das dez pessoas que mudaram a cara da psiquiatria norte-americana", ele visa desmascarar a impostura psicanalítica. Não por acaso, o título mimetiza outro empreendimento editorial "libertador", a saber, "O Livro Negro do Comunismo" (1997).
Os métodos, nos dois casos, não são muito distintos. Trata-se de anunciar o fim de uma era de ilusões devido ao alvorecer radioso daquilo que, supostamente, não é superstição ou ideologia rasa. Nesse sentido, também não é casual que tal alvorada seja animada pela eficácia da democracia liberal ou pela precisão da guinada organicista da psiquiatria, acompanhada, quando necessário, pelas técnicas adaptativas de terapia cognitivo-comportamental.
Nos dois casos, procura-se despedir, pela porta dos fundos, duas das mais influentes experiências intelectuais do século 20: a psicanálise e o marxismo. Experiências decisivas para configurar o modo como compreendemos a nós mesmos e a nossos vínculos sociais, bem como a forma como definimos nossas expectativas de realização, de reconhecimento e de crítica.
No seu lugar, aparece um homem enfim reconciliado com as certezas liberais, livre do obscuro desejo de transformações sociais ou da suspeita radical em relação a formas hegemônicas de vida.
Suspeita animada por ideias difundidas por Freud: a família burguesa como núcleo produtor de neuroses; os processos de socialização, com seus valores e suas normas como indissociáveis da produção de sofrimento e de patologias; a sexualidade como campo de construções instáveis e contraditórias; a unidade coerente das condutas como algo sempre prestes a entrar em colapso; e, principalmente, a autonomia individual como internalização disciplinar de vínculos a autoridades que encontramos em instituições como a família.
INDIVÍDUO LIBERAL Assim, longe de um sujeito que aprendera a criticar seus ideais reguladores de autonomia, de autenticidade e de identidade, temos as portas abertas para um indivíduo liberal que, depois de décadas de insegurança e incerteza, pode calar todas as críticas com a força de quem ganhou uma sangrenta guerra fria contra seus inimigos internos.
Mas como "O Livro Negro da Psicanálise" organiza sua batalha contra o inimigo e como ele, posteriormente, apresenta aquela que seria a teoria vitoriosa? Seu primeiro passo consiste em afirmar que os casos freudianos são farsas. Os traumas ligados à sexualidade, assim como os conflitos edípicos, teriam sido, em larga medida, invenções de Freud impostas aos seus pacientes (certamente porque os autores preferem crer que não há nada parecido com a sexualidade infantil e seu polimorfismo).
No entanto, não deixa de ser interessante lembrar que Freud foi o primeiro a reconhecer problemas em sua própria clínica, falhas em seus próprios casos. Nada estranho para alguém disposto a construir hipóteses, confrontá-las com casos particulares e reordená-las a partir de dificuldades. Isso não o impediu de alcançar resultados inegáveis em casos como o do "Homem dos Ratos", sucesso que até "O Livro Negro" é obrigado a reconhecer.
PÓS-FREUD Mas insistamos ainda neste ponto. Se tudo não passasse de uma grande farsa, seria difícil explicar como a psicanálise teve resultados clínicos tão significativos após Freud?
Um verdadeiro trabalho epistemológico sobre a psicanálise deveria levar em conta casos clínicos de psicanalistas como Lacan, Winnicott, Bion, Kohut, Kernberg, assim como o relato de pacientes que se dizem respondidos em sua demanda de cura. Isso não ocorre porque "O Livro Negro" procura nos fazer acreditar que a psicanálise seria uma prática estática, que nunca teria se modificado e se criticado desde Freud.
"O Livro Negro da Psicanálise" não é, no entanto, apenas uma máquina de guerra contra a teoria freudiana. Ele prega o conhecimento adequado da mente, do sofrimento e dos transtornos mentais graças aos "passos de gigante" das ciências do cérebro, à "verdadeira revolução" nos exames cerebrais por imagens e nas pesquisas farmacológicas. Pesquisas cujos resultados não são nem de longe aquilo que a indústria farmacêutica, com seus lucros milionários, gostaria de nos fazer acreditar.
PARALELISMOS
Aqui vale um aparte. Desde Descartes, ninguém nunca questionou a existência de paralelismos entre mente e cérebro. Dificilmente alguém ficaria surpreso em descobrir que uma alucinação auditiva na esquizofrenia exige uma atuação das regiões do córtex que costumam cuidar dos sinais de audição, ou que, em transtornos de ansiedade, a amígdala cerebral funciona como um sistema de alarme desregulado.
Ilusória é, na verdade, a crença de que a descrição de tais paralelismos e a atuação farmacológica a partir deles possa eliminar o processo que causou os sintomas. A não ser que estejamos dispostos a aceitar afirmações inacreditáveis, como esta, da filósofa Joëlle Proust no "Livro Negro da Psicanálise", para quem o sofrimento psíquico não tem relações com a forma como o paciente, a partir de suas próprias convicções e motivações, reflete sobre seus sintomas.
Talvez isso explique por que, atualmente, uma das queixas mais comuns de pacientes com transtornos mentais seja a de não serem ouvidos pelos médicos, como se o que têm a dizer sobre sua própria doença não tivesse lugar. Como se a mobilização crítica de sua história, crenças, desejos e ambiguidades de nada servisse na construção de modelos de ação diante de sintomas, inibições e angústias.
Afinal, talvez tal mobilização crítica não seja necessária, pois manuais de psiquiatria, como o DSM, já nos forneceriam o modelo normativo de uma individualidade reconciliada. Neste caso, como o modelo já está dado, não há nada que a rememoração de uma história singular possa construir.
INOVAÇÃO É nesse ponto que podemos sentir o cerne do aspecto inovador da teoria freudiana. Ele está presente em dois textos que aparecem ao leitor brasileiro em tradução cuidadosa de Paulo César de Sousa, no interior das "Obras Completas" de Freud, da Companhia das Letras. O primeiro é "O Eu, o Id, Autobiografia' e Outros Textos" [vol. 16, 376 págs., R$ 52]. Já o segundo é "Psicologia das Massas e Análise do Eu" [vol. 15, 352 págs., R$ 52].
Este empreendimento editorial é louvável, ainda mais se levarmos em conta que o Brasil tem, certamente, a pior tradução das "Obras Completas" (Imago, organizada por Jayme Salomão), já que foi, em larga medida, feita a partir da versão inglesa.
Durante décadas, pesquisadores brasileiros não germanófilos foram obrigados a trabalhar com as versões em espanhol ou em francês. De toda forma, a tradução de Paulo César de Sousa (assim como a boa tradução de Luiz Hanns, publicada pela Imago) não deixa de apresentar opções polêmicas.
Já o título "O Eu e o Id" não é plenamente justificado. "Das Ich und das Es" deveria ser traduzido simplesmente por "O Eu e o Isso". Isto permitiria à tradução guardar a polaridade sugestiva de uma individualidade cindida entre aquilo que se deixa nomear pelo pronome da primeira pessoa e aquilo que só encontra forma nesse pronome impessoal que nomeia o que, em nós, parece não querer se colocar sob a forma da pessoa.
Há ainda escolhas não facilmente defensáveis, como traduzir "Trieb" por "instinto", em vez de "pulsão", sendo que, se Freud quisesse, poderia ter simplesmente usado "Instinkt". Mas é certo que a tradução de textos ricos em ressonância como os de Freud nunca será livre de polêmica. O importante é que a tradução que o leitor tem à mão é de inegável qualidade.
EU Nesses dois textos, Freud problematiza o conceito de individualidade organizada a partir do Eu como unidade psíquica de síntese e de coerência das condutas. Conceito que serviria à clínica de norma, como se nosso sofrimento psíquico aparecesse sempre lá onde o indivíduo, com sua unidade, sua autonomia do Eu e sua autenticidade, não pudesse mais nos guiar. O que nasce dessa reflexão freudiana não é exatamente um modelo de conhecimento de si, como se costuma dizer, mas um modelo de "suspeita de si".
Por exemplo, "O Eu e o Id" é um texto de maturidade, que vem logo após a importante reformulação da teoria freudiana da pulsão feita em "Para Além do Princípio do Prazer", de 1920. Sua função é, assim, sistematizar a teoria do aparelho psíquico depois do desenvolvimento dos conceitos de pulsão de vida e pulsão de morte.
Nesse trabalho central na bibliografia freudiana, essa nova teoria pulsional será articulada às distinções psicanalíticas entre consciente, pré-consciente e inconsciente, assim como à nova distinção do aparelho psíquico em Eu, Supereu e Isso. Este será o primeiro texto no qual Freud desenvolverá, de maneira sistemática, sua teoria do supereu como instância moral de auto-observação responsável pela formação dos ideais e do sentimento de culpa.
É dessa teoria que derivará a compreensão das patologias mentais, já que Freud sempre utilizará o esquema da doença como regressão e degenerescência. Trata-se de uma ideia muito presente no final do século 19: a crença de que, na doença, fazemos o caminho inverso ao processo de formação e desenvolvimento psicológico.
IDENTIFICAÇÕES
Ao descrever tal processo de formação, Freud parte da centralidade das dinâmicas de identificação e de internalização, ou seja, constrói-se o Eu por identificações que nos permitem internalizar modelos normativos de conduta, de desejo e de valoração vindos de figuras de autoridade que parecem nos garantir formas bem-sucedidas de vida.
Nesse sentido, a peculiaridade de Freud não vem de sua insistência de que podemos sofrer por não conseguirmos dar conta de tais valores e normas internalizados, como se nosso sofrimento psíquico fosse a marca patológica de nosso vínculo a ideais bloqueados.
O giro freudiano, e isto está claramente presente em sua teoria do supereu (objeto maior dos dois livros em questão), consiste em explorar o fato de que há situações nas quais os próprios valores e normas podem ser irrealizáveis, ou seja, podem ser um construto contraditório que visa dar conta de disposições heteróclitas.
Aquilo que procura ter peso normativo em nossas vidas pode ser parte do problema, e não da solução. Para uma sociedade como a nossa, que quer acreditar a todo custo que nossas formas hegemônicas de vida não estão em crise, colocações como estas de Freud não poderiam encontrar lugar.
MASSAS Nesse sentido, um texto como "Psicologia das Massas e Análise do Eu" é fundamental. Reconhecido por filósofos como Theodor Adorno e por juristas como Hans Kelsen como um texto maior referente à psicologia social contemporânea (Adorno chegará a utilizá-lo como descrição precisa da psicologia do fascismo), "Psicologia das Massas" traz uma tese inovadora.
A princípio, parece que temos mais um texto sobre a formação das massas através de alguma forma de regressão do comportamento dos indivíduos. Baseando-se na bibliografia da época (Gustave Le Bon, Mac Dougall, Gabriel Tarde), Freud parece fornecer mais um capítulo na literatura conservadora de crítica ao advento das sociedades de massa, com seu comportamento "irracional" e sua maneira de se submeter a lideranças carismáticas e autoritárias.
No entanto, Freud faz uma associação plena de consequências. Segundo ele, só podemos compreender a formação das massas se virmos nelas a consequência de fraturas sempre abertas no processo de formação do Eu e de seus ideais. Ou seja, as massas submetidas à liderança totalitária não aparecem lá onde o indivíduo se enfraquece e entra em colapso, mas seriam uma espécie de correlato, de risco sempre presente, devido ao mecanismo interno próprio ao processo de formação do Eu.
Esse é o modo freudiano de mostrar como nossos ideais de maturação subjetiva eram, muitas vezes, parte dos problemas que apareciam tanto na vida social quanto na clínica.
SUSPEITA DE SI
Por isso, podemos dizer que o maior legado de Freud talvez tenha sido um modelo de suspeita de si, uma forma de vida caracterizada, principalmente, pela suspeita em relação aos ideais que organizam nossos processos de maturação e nossa vida social. Uma consequência clínica fundamental de tal suspeita é a certeza de que o tratamento é indissociável de um lento processo, no interior do qual o paciente serve-se da rememoração para construir modos singulares de habilidades para lidar com conflitos e contradições que nunca desaparecerão, que lhe exigirão, em vários momentos de sua vida, a capacidade de se quebrar e se reconstruir. Modos singulares porque ele não tem à sua disposição uma saída geral para seus impasses.
Assim, se a clínica freudiana nunca foi refratária à crítica, se ela sempre soube se reinventar, é porque Freud sabia que sua experiência intelectual colocava em operação um modelo de reflexão que desconstruía a estabilidade de nossas figuras gerais de normalidade e de maturação psíquica.
Como um fantasma que ronda as sociedades modernas ocidentais, Freud lembrou que nossos doentes são, muitas vezes, provas vivas das crises provocadas por nossos próprios valores. Talvez seja por isto que, desde que nasceu, a psicanálise sempre teve a última palavra diante daqueles que apostaram em seu desaparecimento.
O giro freudiano consiste em explorar o fato de que há situações nas quais os próprios valores e normas podem ser irrealizáveis
Freud foi o primeiro a reconhecer problemas em sua própria clínica, falhas em seus próprios casos. Nada estranho para alguém disposto a construir hipóteses
"O Eu e o Id" é um texto de maturidade, que vem logo após a importante reformulação da teoria freudiana das pulsões feita em "Para Além do Princípio do Prazer". Não por acaso, o título do "Livro Negro da Psicanálise" mimetiza outro empreendimento editorial "libertador", "O Livro Negro do Comunismo"
O que nasce dessa reflexão freudiana não é exatamente um modelo de conhecimento de si, como se costuma dizer, mas um modelo de "suspeita de si".