Por Sergio Keuchgerian
É quase impossível encontrar alguém no planeta terra que não saiba o que é um computador e que ele tem um cérebro chamado disco rígido (popularmente chamado de HD). Assim como dificilmente você encontrará alguém que não saiba que no interior da mente humana habitam pensamentos conscientes e outros, ocultos e menos óbvios, que são comumente chamados de inconscientes.
Ninguém vai achar estranho se você disser que o disco rígido do seu computador está superlotado e que terá que providenciar um outro para armazenar mais dados. E muito menos alguém vai te chamar de louco quando você ao final do relato de um sonho disser algo como “não sei como isso surgiu na minha cabeça, provavelmente saiu do meu inconsciente”.
Palavras como ego, disco rígido, memória ran, inconsciente, libido, são tão corriqueiras nas conversas diárias quanto a expressão “isso nem Freud explica”. Porém, a naturalidade com a qual as expressamos esconde o difícil caminho percorrido por seus geniais criadores. Nenhum deles teve vida fácil ao tentar implantar suas ideias. No caso dos criadores dos HDs foi menos difícil, já que ele é um objeto feito de matéria e visível a olhos nus. Mas para Freud, que falava de coisas abstratas, não visíveis, de difícil capacidade comprovatória, o caminho foi árduo. Até a psicanálise ganhar status de método terapêutico e credibilidade, Freud foi quase que sistematicamente descredibilizado por seus próprios pares. Reflexo do zeitgeist de 1900, ou como, talvez, o próprio Freud diria: trabalho de resistência do inconsciente coletivo. Isto posto, passemos as questões propostas neste trabalho, que são demonstrar de maneira breve o conceito de Freud sobre o inconsciente, seu funcionamento e como se tem acesso a ele.
Segundo Freud, o inconsciente não é localizável física ou anatomicamente, é um lugar psíquico com conteúdos e energia própria e integra o que ele chama de aparelho psíquico. Para Freud, o aparelho psíquico não se resume apenas ao inconsciente, mas também da consciência e do pré-consciente. Os conteúdos do inconsciente são os chamados latentes, já o conteúdo manifesto é o que reside na consciência. Esse conceito faz parte da primeira tópica do livro “A interpretação dos sonhos”, obra basilar da psicanálise. No inconsciente ficam armazenados os afetos recalcados, é onde se acumulam as frustrações, desejos reprimidos, fantasias imorais, histórias reais ou imaginadas que foram expulsas ou rejeitadas do nosso consciente com o objetivo de nos manter relativamente equilibrados no cotidiano. Algo parecido com a função do HD interno do computador, reservatório de arquivos e imagens, onde você “salva” afetos com os quais não seria possível conviver de maneira saudável ou confortável.
Freud argumenta ainda, que há um conflito permanente entre o consciente e o inconsciente. Esse conflito é capitaneado pela censura, que não permite que esses conteúdos possam transitar do inconsciente para o consciente sem disfarces ou transformações que alterem suas verdadeiras aparências ou representações. Além disso, há o pré consciente que é parte integrante desse mecanismo e que também divide com a consciência esse papel de censor. Ele é tão resistente quanto a consciência e só libera o conteúdo do inconsciente, ou melhor, só deixa que ele se manifeste na consciência por meio de representações alteradas ou imagens distorcidas. Assim, para que o conteúdo latente transite para fora do inconsciente e se torne manifesto na consciência é condição si ne qua non que ele assuma disfarces. Segundo Freud, esses disfarces são mecanismos de defesa gerados pela censura que trabalha com o intuito de não permitir que esses conteúdos migrem para o território da consciência.
Os mecanismos de defesa continuam ativos mesmo enquanto dormimos. Freud os denomina de trabalhos do sonho. Eles têm a função de zelar por nossa integridade psíquica, minimizando o impacto que nos causariam se chegassem ao consciente em sua forma original, isto é, sem que antes tivessem suas representações alteradas. Funcionam como filtros que não permitem que os conteúdos cheguem ao consciente sem antes passarem por transformações que alterem suas aparências. Para que isso ocorra a mente desenvolveu trabalhos entre os quais estão a Condensação e o Deslocamento. O trabalho de condensação ocorre quando várias representações psíquicas, isto é, conteúdos presentes no inconsciente (conteúdo latente) se concentram em uma só imagem ou representação do conteúdo manifesto. Já o trabalho de deslocamento ocorre quando o conteúdo latente vem carregado de muito afeto e este afeto seria de difícil aceitação caso não sofresse algum disfarce. Assim, ocorre a desconexão entre a representação do afeto real e a representação do que está manifesto,
Os trabalhos do sonho ajudam a dar vazão ao conteúdo recalcado do inconsciente, revelando-o para o consciente de forma menos traumática. Sem esses mecanismos, provavelmente as revelações do conteúdo inconsciente seriam insuportáveis. Também o sono, necessário porque regenerador, seria interrompido frequentemente impossibilitando o descanso. Para Freud o conteúdo recalcado, isto é, a matéria residual menos palatável daquilo que experimentamos desde o início da vida, e que foi por nós reprimido e hospedado no inconsciente, tenta nesses embates escapar e de alguma forma retornar ao consciente. O sonho, assim como os sintomas, o chiste, os lapsos de memória e a transferência, é um dos retornos dos conteúdos reprimidos. Nele os recalques se fazem presentes de formas disfarçadas, representados por imagens, símbolos, situações e diálogos as vezes sem sentido, como resultado de um compromisso feito entre a consciência e o inconsciente.
O acesso ao inconsciente não é algo que se alcance deliberadamente. A única possibilidade de se acessar o inconsciente é por meio de sua revelação ou manifestação na consciência. E essa manifestação chegará à consciência de forma alterada, distorcida. Partindo dessa premissa, a psicanálise, com o conjunto de instrumentos que integram sua metodologia pode facilitar o acesso ao inconsciente. Porém, o acesso terá que percorrer necessariamente o método investigativo. Seja por meio da associação livre ou da interpretação dos sonhos, bem como pela escuta dos significados da narrativa e das palavras, lapsos, chistes e observando comportamentos e hábitos recorrentes.
Certo é que o inconsciente é parte indissociável de nossa estrutura mental. E por não ser um órgão físico, como o HD mencionado no início deste trabalho, ele tem capacidade de armazenamento ilimitado. Podemos sem medo afirmar que o inconsciente é um depositório infinito de afetos que inevitavelmente já interferiram, interferem ou vão interferir no nosso modo de ser e de ver o mundo. Trocando em miúdos e citando o próprio Freud: “a voz do inconsciente é sutil, mas não descansa até ser ouvida”.