Por Ivan Roberto Capelatto1 Gosto muito de gente. Uma das felicidades da minha profissão de jornalista é estar sempre conversando com pessoas, especialmente a gente comum. Acabo conhecendo um pouco de sujeitos maravilhosos, os quais eu não encontraria se não fosse repórter. Gosto de saber como pensam, agem e reagem, como se movem na vida, suas dores e alegrias. Invariavelmente acabo afetada por essas pessoas e carregando um pouco delas comigo durante um bom tempo. Até que processo de tal forma aquilo que era do outro que passa a fazer parte de mim. Minha amiga jornalista Patrícia Zanin, que tem o dom da escuta do outro como só raras pessoas têm, conta que costuma ficar na cabeça com falas inteiras de seus entrevistados. Eu fico com sensações, ideias, trechos de falas, pensamentos, que generosamente compartilham comigo. A experiência delas me ajuda a me entender melhor. E não são as grandes vivências, mas as pequenas coisas do dia-a-dia que acabo carregando comigo. Foi assim com uma jovem que tinha vários gatos em casa e passou a sofrer pressão de vizinhos para se livrar deles. Se estava certa ou errada em manter os animais em casa, não é o caso aqui, mas sim o quanto estava assustada. ""Para mim, eu estava fazendo algo bom. Nunca imaginei viver uma situação dessas por estar cuidando de animais de rua."" Não havia raiva em sua fala, mas perplexidade. Ela parecia realmente não conseguir encontrar um sentido na reação tão agressiva das pessoas. A pressão dos vizinhos afetou tanto a jovem que ela não conseguia mais sair na rua sem olhar para os lados. A ideia de que iriam invadir sua casa e colocar fogo passou a persegui-la. Ela se assustava até com o toque do telefone. Algo que parecia não ter maiores consequências, a abalou de tal forma que passou a viver com medo e assustada. Eu acredito muito na força do ser humano, na sua capacidade de se reinventar, de encontrar saídas onde estas parecem não existir. Mas há também uma delicadeza que não pode ser desprezada, para a qual o psicanalista Ivan Capelatto chama a atenção em entrevista para a Rádio UEL FM, para a Patrícia Zanin, sobre Transtorno do Estresse Pós-Traumático (TEPT). “As pessoas precisam acordar para a fragilidade extrema que é o ser humano. O ser humano é efetivamente afetivo, não é de plástico, uma coisa que simplesmente esquece o que aconteceu. Precisamos acordar para a vida”, alerta o psicanalista. “[É preciso] se importar. Se responsabilizar pelo outro.” A entrevista será postada no blog em duas partes. JL: Capelatto, você deu um curso com esse tema e as pessoas ficaram muito afetadas com a sua fala. O que você tem pesquisado sobre esse transtorno? Capelatto: O Transtorno de Estresse Pós-Traumático, que a gente chama carinhosamente de TEPT, é uma modificação que pode ser na personalidade, no equilíbrio do organismo, pode causar doenças, vai mexer em todas as áreas do sujeito. E – diferente do distúrbio, que tem começo, meio e fim – o transtorno é para o resto da vida. JL: Mexe no sistema orgânico, fisiológico, mental? Capelatto Em tudo. No psicológico, no sistema imunológico, nos hábitos, na vida social e afetiva. O TEPT é a reação a uma invasão que acontece na vida do sujeito – um assalto, a perda drástica de algo ou alguém – à qual não é permitido fazer o luto. Na perda pela doença, o sujeito vai fazendo o luto. Mas muitas vezes perde-se alguém de repente – assassinato, roubo, latrocínio – [a pessoa] quer chorar, gritar, fazer um escândalo, aí alguém vem e medica. Não deixa fazer o luto. Qualquer evento (guerra, estupro, violência, bullying) que traga horror, angústia e que não sofra uma elaboração imediata, um atendimento adequado imediato, vai gerar o TEPT. O estupro é a causa maior do TEPT. Hoje o Brasil, infelizmente tem sido recordista, quase tanto quanto a África, em estupros de homens, mulheres e crianças. Hoje os homens estão sendo estuprados também. Não sei se vocês sabem disso, mas o número de estupros de homens é muito alto. É que os homens têm vergonha de dar queixa. São homens estuprados por homens. Testemunhas de violência, bulliyng, os sobreviventes de tragédias (cataclismos, enchentes), provavelmente também serão vítimas de TEPT. Sintomas: Os sintomas são a revivência do evento. A pessoa começa a ter flashs, às vezes, começa a ter uma síndrome de despersonalização, a não querer lembrar, então agride as estruturas básicas da personalidade, começa a ter delírios. Ou começa a imaginar que aquilo vai acontecer de novo, então não quer voltar ao lugar onde aconteceu. Ou ao contrário começa a querer ver, a lembrar, a achar que todos na rua são parecidos com o ladrão que a assaltou e machucou. Às vezes a raiva faz com que queira conversar com o ladrão, saber por que matou o filho. Todas as idades: O TEPT é um quadro gravíssimo que acontece com crianças, adolescentes, adultos, não há idade. Como pode acontecer imediatamente após o evento ou um ano, dois anos depois, quando alguém começa a adoecer as pessoas não se dão conta de que houve aquele gatilho lá atrás. Existe uma coleção de sintomas e o TEPT não tem cura. Tem que ser tratado constantemente. Ele pode desenvolver uma depressão que a gente chama de depressão maior que é a tristeza constante. Diferente das depressões menores, nas quais a pessoa fica triste depois fica bem, a depressão maior é uma tristeza linear. A pessoa começa a abandonar tudo até emprego, não consegue ficar perto daqueles que gosta, perde o apetite. As doenças associadas ao TEPT são muitas: somatizações, lúpus, câncer, quadros alérgicos até ao lugar onde mora. Mas o quadro mais grave é a depressão maior, que é uma coisa terrível. É crônica e complicada. JL: Como identificar esse transtorno em uma pessoa que a gente gosta e conhece? Capelatto: Quando a pessoa começar a falar do evento, a repeti-lo, a ter flashs do evento ou começar a modificar hábitos. Mas, o que mais precisamos fazer sempre que uma criança, adolescente, adulto for surpreendido por uma situação que nunca teve na vida, é levar para um profissional. Essas situações podem ser acidente de carro, assalto, ficar preso na enchente, o atropelamento de um cachorro, bullying, saber por telefone que a avó está com câncer, estupro, nas escolas tem havido estupros no banheiro. Se não tem recursos financeiros, deve procurar o CAPS que é um sistema de saúde. Alguém precisa cuidar, porque toda vez que a pessoa sofrer um evento que não é habitual e não ficar bem claro pode gerar um TEPT. Então, tem que fazer o luto, tem que conversar sobre aquilo, mesmo que aparentemente o evento pareça simples para as pessoas. As crianças muitas vezes começam a ter medo das nuvens, porque houve um evento traumático: o raio caiu em casa e queimou a geladeira, a televisão. “Mãe quero assistir televisão.” “O raio queimou a televisão.” Essa frase é assustadora. Uma coisa que veio de fora entrou aqui dentro e queimou a televisão. Isso pode gerar um transtorno. Daqui a pouco o flash de uma máquina já gera todo um distúrbio neurovegetativo (taquicardia, sudorese, dor de barriga). Então as pessoas precisam sentar com a criança e ouvir o que ela está sentindo, talvez ajudá-la com desenho [pedir para a criança fazer um desenho sobre a situação]. As cenas de guerra que a mídia traz podem gerar o TEPT em uma criança. É como se ela tivesse testemunhando algo que não é habitual, então precisa ver a reação dela no dia seguinte. O 11 de setembro gerou uma legião de pessoas com TEPT, que hoje estão sendo tratadas com medicação e terapia. Os psiquiatras começaram a se especializar em TEPT porque foram muitas pessoas que viram os aviões e as torres caindo e as pessoas se jogando. JL: Primeiro de tudo precisa falar? A fala é o primeiro passo para que a pessoa possa entender e organizar o que está acontecendo? Capelatto: A fala é o primeiro passo. E da fala, vem algum sentimento, o medo, a raiva, o horror. Nos eventos mais incompreensíveis para nós, como o estupro, o horror que vem na fala já ajuda essa pessoa a começar a trabalhar esse luto. Muitas vítimas de estupro não conseguem falar. Porque o horror é tanto, que às vezes não há palavras para expressar o que se está sentindo. A raiva demora a chegar. A raiva no luto é o último elemento. Até chegar nela não há palavras para expressar o horror de ter vivido ou presenciado aquilo. Então, precisa contar a cena, o que estava acontecendo antes, descrever o lugar. Mulheres, homens, crianças que viveram o estupro sentem o cheiro do estuprador, descrevem o barulho que estava acontecendo, até falar. JL: Às vezes a gente perde um pouco a dimensão, tem famílias que insistem para que a pessoa verbalize. Isso pode gerar um constrangimento a mais para a pessoa? Capelatto: Às vezes querem que o outro fale pela curiosidade em ouvir, não pelo desejo de ajudar. A aproximação para ouvir a fala do outro tem que ser muito cuidadosa. Por exemplo, uma criança chegou em casa e a gente percebe que alguma coisa aconteceu. Então, vamos desenhar. “A mamãe, o papai tá percebendo que você não está bem. Vem aqui. Vamos desenhar o que aconteceu.” E, às vezes, foi um susto na perua que a estava trazendo da escola e ela não consegue falar porque está impregnada daquela sensação de horror. Ela faz parte dessa autoria. Ela testemunhou isso. Tem que ter cuidado. Nunca falar que não foi nada. Jamais aliviar o horror ou a possível tragédia. Se a pessoa estava junto, fale do que está sentindo também. “Põe a mão no meu coração. Olha como eu estou assustada também. Estou com medo.” Se não estava junto, facilite para que a criança fale. Às vezes ela vem para casa e nós não percebemos e dali um ano ela começa a manifestar sintomas daquilo que aconteceu. Daí precisa de ajuda profissional, mesmo. JL: O que estou prestando atenção na sua fala é que assim como nas entrevistas sobre medo, raiva e culpa, nas quais você falou sobre não desqualificar esses sentimentos, o mesmo vale para o TEPT. Por que o impulso é de minimizar, não é? Capelatto: Como se agente qualificasse o evento pelo evento e não pelo sofrimento que a pessoa está tendo. JL: Essa é grande diferença, então? Fazer uma análise do evento e não do sofrimento? Capelatto: Por exemplo, uma criança que está no carro com o pai e que presencia o acidente do lado. Ela não sofreu o acidente, mas por ser testemunha ela pode ter um TEPT. E o pai fala: “Não aconteceu nada com a gente”. Ele não imagina o horror sentido pela criança. Imagine quanta coisa deve ter passado na cabeça de uma criança boa ao ter visto algo, ter ficado impotente frente a esse algo e ter associado isso a tanta coisa: à mãe, ao irmão, a ele mesmo. E aí alguém minimizar: “Não foi nada, esquece“. Não esquece. O estressor nunca é esquecido e no momento em que o pai fala esquece, ele está condenado esse filho a uma existência falida. Não esquece não. “Vamos falar sobre o que você está sentindo.” “Está com medo de que?” Essa fala já pode interromper um TEPT. Se não interromper vamos procurar ajuda. Porque a angústia, o horror que o TEPT traz vai interromper o desenvolvimento da personalidade ou se a personalidade já está formada vai desmontá-la. JL: TEPT convoca para viver o luto. Todos devem prestar mais atenção nesse processo. Capelatto: É necessário que a gente faça esse movimento para interromper o transtorno. Se não fizer o trabalho em cima do horror, se não fizer o luto, vamos ter o TEPT, que é para o resto da vida. E às vezes uma conversa, uma audição que se faça com a criança ou com o adulto, nós conservamos a qualidade de vida. JL: Você falou que não dá para curar. As pessoas vão ficar a vida inteira se tratando. Esse tratamento é terapia? Capelatto: Terapia. Às vezes alguma medicação de início. Por exemplo, uma pessoa que foi estuprada, que presenciou um terremoto, um alagamento, uma pessoa que perdeu tudo na enchente, perdeu filho com tiro em assalto, precisa ser medicada e ter um acompanhamento psicoterápico intensivo no começo. Depois pode visitar o terapeuta uma vez por mês, uma vez a cada seis meses, mas nunca se afastar. É um tratamento para o resto da vida. Se interromper o tratamento um evento parecido retoma todos os flashes, a gente chama de revivecências. Volta tudo porque como é um transtorno não se cura. Tanto o cérebro quanto o psiquismo vão retomar aquilo. Por isso que a gente chama de estresse. Mesmo o estressor estando distante, o estresse continua presente. Alguém, por exemplo, que perdeu um ente querido num latrocínio. Essa pessoa vai estar cercada de informações [sobre latrocínio], mesmo que ela não veja televisão, na fila do banco alguém contar um caso sobre latrocínio e vai desencadear na pessoa aquilo que está vivo no horror. Então, essa pessoa precisa correr lá para o terapeuta e contar o que ela escutou, senão a revivecência volta. É como se ela vivesse tudo como momento em que aconteceu. JL: Pode ser uma pessoa sem ser o terapeuta? Um cuidador, alguém de confiança que pode fazer esse papel em alguns casos? Capelatto: Quando no momento do evento a pessoa começar a falar, às vezes um irmão, um pai, a esposa, sim. Quando o TEPT começa um, dois anos depois, tem que ser um profissional. 1Psicoterapeuta de crianças, adolescentes e famílias; Mestre em Psicologia Clínica pela PUCCAMP; Supervisor e professor do GEIC de Londrina - PR; (grupo de estudos e pesquisas em psicopatologias da família, da infância e da adolescência); Professor convidado do curso de Terapia Breve Familiar do The Milton H. Erickson Foundation Inc.(Phoenix, Arizona, USA);xColaborador da UNESCO com o Projeto de Vida , apoio do jornal O Estado de São Paulo. Fonte: http://www.jornaldelondrina.com.br/blogs/inventaravida/