Por Sergio Keuchgerian
Até aproximadamente a segunda metade do século XIX, o estudo da mente e as tentativas de compreensão do comportamento humano eram matérias de estudo que se alojavam sob o teto abrangente da medicina.
Antes disso ainda na Grécia antiga, os distúrbios mentais eram muitas vezes relacionados ao sobrenatural ou vistos do ponto de vista do misticismo. Os primeiros registros de abordagens que levavam em conta fatores físicos e biológicos no estudo das doenças mentais ocorreram com Hipócrates.
Ao longo dos séculos, o tratamento dos distúrbios mentais definitivamente passou a ocupar um espaço significativo nas pesquisas e estudos dentro das escolas de medicina. Já na segunda metade do século XVIII a medicina tinha o monopólio da compreensão da mente e do comportamento humano. Asilos e hospitais psiquiátricos surgiram como forma de confinar e tratar pessoas com distúrbios mentais. Com a chegada do século XIX, pensadores como William James e Wilhem Wundt trouxeram uma grande contribuição para o desenvolvimento da psicologia defendendo a mesma como uma ciência distinta jogando luz nos experimentos e observações comportamentais.
Já na segunda metade do século XIX, a partir dos estudos da histeria com Charcot e outros distúrbios mentais, iniciou-se um interesse cada vez mais crescente objetivando a compreensão dos processos mentais inconscientes e de como eles interferiam no comportamento humano. Dentro deste contexto a psicanálise começa a se desenvolver tendo suas raízes na medicina e evoluirá ao longo do tempo até nossos dias a partir de Breuer e Freud, que aliás era médico neurologista. Freud cria conceitos revolucionários para a época, como o inconsciente, a interpretação dos sonhos e a teoria das pulsões, conceitos esses que desafiaram as abordagens médicas tradicionais. Além disso, Freud desenvolveu técnicas para a prática terapêutica, como a associação livre e a escuta flutuante para explorar os processos mentais inconscientes.
A psicanálise de Freud recebeu críticas ferozes e teve fortes adversários dentro do universo médico de Viena. Com o tempo foi gradualmente sendo aceita, e a matéria se expandiu e germinou nos mais variados países em todo o mundo. Freud teve discípulos que contribuíram com suas próprias teorias e abordagens dentro da psicanálise. Melanie Klein, também vienense, depois de entrar em contato com a obra de Freud, trouxe novas perspectivas para a psicanálise, principalmente enfocando o universo infantil, revelando a relação mãe-bebê e o desenvolvimento da psique infantil e como ela vai influenciar todas as fases da vida humana. Além disso Klein introduziu os conceitos de posição esquizoparanóide e depressiva dentro dos conceitos da psicanálise, posições essas que definem estados mentais que a partir da tenra infância a pessoa irá experimentar e repetir ao longo da vida. Freud e Klein deixaram um legado indispensável que continua a influenciar a psicanálise até a atualidade.
Partindo dos fundamentos teóricos de Klein e Freud, Wilfred Bion, psicanalista britânico nascido na Índia, analisando e discípulo de Klein, reinterpreta a leitura feita por Klein sobre a obra freudiana. Bion ao contrário de Freud e Klein, se distancia verticalmente da epistemologia da medicina afastando de vez da clínica psicanalítica a herança da metodologia ontológica e da casualidade. Portanto, a evolução da psicanálise a partir da perspectiva de Bion envolveu uma mudança na visão da psicanálise como uma simples extensão da medicina para uma disciplina distinta e independente, com suas próprias teorias e práticas. Suas contribuições, como a teoria dos elementos beta e a função alfa, influenciaram significativamente a maneira como os psicanalistas entendem e praticam a psicanálise nos dias de hoje.
Bion desenvolve conceitos próprios como o pensamento sem pensador, a função Alfa e o conceito de continente e conteúdo. Ele enfatiza e passa a valorizar a experiência emocional do analisando no momento da sessão. Para ele, o analista deve estar atento às emoções imediatas do paciente e ao processo de pensamento que ocorre dentro do setting, isto é, como os sentimentos se manifestam durante a sessão. Para Bion, o analista deve estar atento às emoções do paciente e ao processo de pensamento que ocorre durante a análise, buscando compreender as resistências e defesas que surgem no presente.
A teoria dos "elementos beta" e a ideia de "função alfa" desenvolvidos por Bion, são conceitos psicanalíticos totalmente dissociados da lógica epistemológica da medicina. Bion faz uso da nomenclatura matemática e enfatiza a importância desses elementos para a melhor compreensão da mente e do processo psicanalítico. Os elementos beta seriam os dados não processados da experiência mental. Eles incluem pensamentos, sentimentos, percepções, imagens e impulsos que não foram transformados em elementos alfa. Os elementos beta muitas vezes não podem ser compreendidos ou comunicados diretamente, são uma representação do conteúdo inconsciente da mente. Na prática, os elementos beta são como fragmentos de informação mental que ainda não foram organizados em um pensamento consciente ou compreensível.
Já a função Alfa é a capacidade da mente de processar, transformar e compreender os elementos beta. Para Bion a função Alfa dá sentido aos sentimentos confusos ou primitivos, ela é essencial para a função mental saudável e a capacidade de aprender com a experiência. É por meio dela que os elementos beta podem ser organizados em símbolos e pensamentos coerentes. Em Bion o processo psicanalítico se dá na cooperação entre analista e analisando, nele o analista faz uso da função alfa para tentar compreender os elementos beta trazidos em análise pelo analisando. Para tanto o analista deve manter a mente livre de interpretações pré-concebidas e preconceitos.
A psicanálise, portanto, tem suas origens na medicina, mas evoluiu para uma matéria independente, baseada em teorias e conceitos próprios sobre o funcionamento da mente humana que evoluíram de forma consistente desde Freud. Ao longo do tempo desenvolveu outras escolas de pensamentos por meio de teóricos que expandiram as teorias e conceitos iniciais e se tornou uma disciplina autônoma e independente com métodos, teorias e metodologia clínica própria. De mera figurante no século XIX, evoluiu com consistência ao longo do século XX assumindo o protagonismo até os dias atuais.