Por Christopher Bollas1
Percurso: O Sr. poderia nos contar sobre sua trajetória intelectual, transitando da literatura e da história para a psicanálise?
Bollas: O fato desta revista ter uma vertente psicanalítica francesa me leva a uma resposta muito particular: não há possibilidade de responder sua questão porque qualquer coisa que eu diga a este respeito seria falso.
Como alguém se torna psicanalista? Quais são as linhas para tal desenvolvimento? É muito difícil dizer. A verdade é que é impossível saber como isto ocorre. Não há uma ligação entre meus estudos de literatura e de história e a psicanálise; não há uma ligação no plano do conteúdo manifesto que possa fazer sentido. Eu não decidi, aos 21 anos, que para me tornar psicanalista seria necessário passar primeiro pelos estudos de história, depois literatura ("jogarei futebol, depois beisebol") para chegar à psicanálise. Em algum momento da minha carreira dei-me conta que haviam alguns pontos de ligações entre as primeiras escolhas e a minha vocação atual, porém não acredito que sejam passíveis de uma descrição fiel com o ocorrido. Portanto, esta questão, quando feita por um analista para um outro, não tem resposta, não pode ter! A verdade é que ninguém pode responder a este tipo de questão. Para respondê-la pode-se apenas fornecer uma série de racionalizações: estive em Berkeley, estive estudando História, trabalhei dentro do contexto do século dezessete tentando caracterizar a Nova Inglaterra e aí recorri à psicanálise para melhor entender meu assunto... Entretanto, além dos estudos, eu era um jovem que foi em busca de uma análise - vejam, está é uma outra trajetória; meus estudos incluíam a filosofia francesa, um pouco de Freud - esta é uma outra trajetória. Assim poderíamos traçar 25, 35, 50, 100 trajetórias diferentes e parcialmente simultâneas; como bem sabem, é impossível saber como alguém vem a ser um psicanalista.
Percurso: A questão parece ser sobre a relação entre seu modo de olhar e pensar enquanto psicanalista que criou uma certa obra e sua trajetória intelectual. Por exemplo, à luz do seu comentário de que "talvez necessitemos de uma nova visão na psicanálise clínica, semelhante a um tipo de antropologia da pessoa", quais poderiam ser as decorrências dessa antropologia na clínica psicanalítica?
Bollas: Eu disse isso em resposta a um problema particular de um paciente que é psicótico e que passa de uma instituição para outra e onde a tarefa do psicanalista é a de registrar uma história cuidadosa que inclua uma antropologia da pessoa especialmente sobre as origens dos primeiros momentos psicóticos. Esses devem ser anotados detalhadamente porque sua história tende a esvanecer-se no decorrer do tempo durante o qual o paciente passa de uma instituição para outra, contando sua história para diferentes médicos de cada um dos hospitais nos quais é internado.
Perderemos sua história, tornando-nos cínicos como no caso de crianças que são transferidas de sua família para uma segunda depois uma terceira... Nós que trabalhamos nas instituições de saúde mental contribuímos para a cronificação da psicose no paciente. Portanto, quando o psicanalista é o primeiro a encontrar o paciente na sua primeira internação, quando se trata do primeiro contato do paciente com o hospital, o analista tem uma tarefa muito especial: ele deve saber que é necessário escrever minuciosa e detalhadamente a história da pessoa e a antropologia da doença para que passem a ser parte do prontuário do paciente que será transferido de uma instituição (consultório) para outra. Pois o paciente compreende neste início algo sobre seu mundo mas ele perderá, com o tempo, a capacidade de contar sua história e, na realidade, começará a esquecê-la na medida que sua psicose progredir. Por isso eu disse, de uma maneira muito particular, que o psicanalista deve funcionar nesta situação como um antropólogo. Numa outra direção eu diria que cada paciente é um idioma e este idioma cria, de fato, seus objetos e seleciona seus objetos particulares - mentais, humanos, inanimados. Esta é a inteligência das escolhas e também é uma cultura peculiar - derivada a partir dessas escolhas - e que deve ser estudada. Nesse sentido a psicanálise é um tipo de trabalho antropológico. Entretanto, lembro-lhes que usei esta metáfora para descrever uma função particular.
Penso também que a psicanálise, no que diz respeito à formação, sofre da ausência de uma maior e melhor participação de profissionais do campo das ciências humanas, como a filosofia, a sociologia, a literatura e também do mundo das artes como a música, as artes plásticas e a poesia. Houve uma alta concentração de pessoas que vêm da medicina e da psicologia. Eles tem muitas contribuições a fazer. Mas, se a psicanálise quer sobreviver para sempre, é preciso do meu ponto de vista, que ela seja transmitida por pessoas que têm a capacidade de escrevê-la bem, ensiná-la bem e que tenham um comprometimento geral e uma paixão para com ela. No momento, talvez não no Brasil, mas na Europa e na América do Norte não existe um amor pela psicanálise dentro dos Departamentos de Psicologia e de Psiquiatria. Ela está morrendo porque as disciplinas majoritárias são hostis à ela de modo que ela não consegue sobreviver nesses departamentos. Mas sempre houve um grande interesse pela psicanálise nos departamentos de literatura. No entanto, as instituições, os agentes oficiais e as sociedades psicanalíticas mantiveram uma desconfiança e uma atitude hostil para com essas entidades. Este fato é trágico, é horrível, mas isto é um outro assunto.
Percurso: Sua atenção para a expressão e a revelação do self em cada momento, através de cada situação e dos objetos concretos da vida cotidiana do paciente não apontariam para um modo particular de investigação antropológica na clínica?
Bollas: Sim. Eu diria que na escuta sim. Podemos ver isto, em teoria, como um tipo de antropologia. Lamentavelmente - depende como queremos olhar para isto - a maneira por meio da qual o analista acolhe o uso que o paciente faz dele enquanto objeto é tão inconsciente que acaba sendo uma antropologia invisível, que nunca foi vista, nunca foi escrita, nunca foi encontrada e no entanto tal antropologia existe. Somente em momentos muito particulares este uso do analista torna a ser evidente. Isto ocorre, mas raramente entra na consciência. É extremamente difícil visualizar, no plano consciente, o uso que o sujeito faz das pessoas enquanto objetos.
Percurso: O Sr. escolheu o Grupo Independente. Sabemos que nos anos 40 ser independente significava uma posição diante das controvérsias entre Anna Freud e Melanie Klein. No entanto, ser independente foi também uma metáfora para uma posição psicanalítica. Com Lacan e outros a Psicanálise criou outros espaços que não somente o das sociedades oficiais internacionais. O que significa hoje ser um analista independente?
Bollas: Primeiro, antes de ir para a Inglaterra, para a Sociedade Britânica, eu estava interessado nos trabalhos da Melanie Klein do mesmo modo que estava interessado nos de Winnicott, Khan e outros. Decidi pelo Grupo Independente porque o analista que escolhi pertencia a este grupo, de forma que a escolha do grupo foi uma conseqüência da escolha do analista. É a regra! Entretanto, penso que seja provável que logo fosse escolher o grupo dos Independentes. Os analistas deste grupo são de dois tipos: um dos quais inclui aqueles que se chamam também do meio (Middle) porque não querem pertencer ao grupo kleiniano ou ao grupo clássico de Anna Freud. Portanto, como conseqüência acabam entrando no Grupo do Meio, como refugiados de outros grupos. Entretanto, eles não têm um interesse particular pela tradição intelectual do grupo independente fundador como aquela erigida pelas linhas de pensamentos traçados por Winnicott, Milner, Khan, Bálint e outros. É uma linha de pensamento muito particular que nem sempre é promovida pelos membros do grupo aos quais estou me referindo - algo que não ocorre do lado dos kleinianos. Embora houvesse um desejo de achar alguma solução para os conflitos dentro da Sociedade, eles eram, do meu ponto de vista, tão intensos que a mentalidade dos analistas independentes, inclusive aqueles que há pouco havia mencionado, era de não querer se envolver, não querer sustentar uma posição nesta guerra entre os convictos. A minha evolução foi tomando rumo à independentização da Sociedade como um todo. Estive sempre andando nas suas margens. Ia raramente para as suas reuniões científicas. Estou muito grato à minha formação dentro do Instituto, mas nunca fui ativo dentro da Sociedade e isto pela seguinte razão: decidi que não queria que o grupo kleiniano fosse meu Outro. Se você pertence à Sociedade Britânica, e neste caso não importa quem você é, clássico ou independente, o grupo para o qual você é obrigado a prestar contas é sempre o grupo kleiniano. Achei que isto ia destruir a minha criatividade. Eu não queria falar para os dogmáticos. Para mim esta conversa nunca é criativa. Portanto, escolhi não ter uma participação profunda na Sociedade Britânica para não ferir as minhas aquisições. Escolhi manifestar-me contra os movimentos oficiais dentro da Psicanálise. Sou contra qualquer forma de kleinianismo, lacanismo, winnicottianismo, com exceção do freudismo. Sou contra o desmantelamento do corpo e espírito da teoria de Freud e a criação dessas igrejas com seus bispos e papas; penso que este fenômeno é destrutivo. Por outro lado, sou a favor da concentração do pensamento em torno de textos, como os textos importantes de Melanie Klein, de Bion, de Lacan e de Kohut. É preciso que sejam estudados e transmitidos por pessoas que são capazes de ensiná-los, elaborá-los e comunicá-los para outros. Há uma diferença enorme entre este tipo de centramento e o de fazer parte de uma escola, tornando-a um movimento que adquire força nas coisas através da tentativa de destruir o pensamento de outra escola. Esta guerra entre escolas destrói a psicanálise assim como a nossa crença no efeito de uma psicanálise pessoal porque se você faz parte de um movimento - que eu temo que seja um movimento fascista, no final das contas - se você participa dele em nome de Melanie Klein, Lacan, Winnicott etc. como poderia justificar sua análise, já que tal conduta significa um verdadeiro repúdio do caminho que você escolheu para a sua vida, enquanto analisando e analista? Algumas pessoas decidiram dizer que na política não há função para a psicanálise e portanto permitem-se distorcer, atacar, denegrir a escola e o pensamento do outro com a intenção de eliminá-lo. Este fato me levou, três anos atrás, a quebrar meu silêncio. Botei a boca no mundo, através dos meus livros e comunicações, porque do contrário a psicanálise não sobreviverá.
Percurso: Nosso Departamento foi fundado sobre um princípio pelo qual o Sr. vela. Entretanto, demo-nos conta de que é impossível estar aberto a todas as correntes do pensamento psicanalítico. Existe sempre uma pressão para constituir-se em torno de uma única linha de pensamento e isto cria problemas entre as diferentes tendências.
Bollas: Penso que a diferença não é um problema, ao contrário é um testemunho de força. A diferença entre analistas evidencia a força do grupo. A questão é quanto à mentalidade operante e o modo pelo qual as diferenças estão sendo negociadas. Se as diferenças estão sendo expressas com inteligência e com a ingênua busca de conhecimento, com o interesse de explorar e desenvolver o pensamento, penso que é possível permanecer mesmo quando há 6 ou 10 opiniões diferentes na sala. Isto é saudável. Não estou falando sobre isto, mas sobre o esforço consciente de destruir a integridade pensante do outro. Existe no movimento psicanalítico atual uma tentativa deliberada de desacreditar, distorcer, diminuir e anular as diferenças. Isto é um fascismo, um genocídio intelectual. O que é diferente dos conflitos, da angústia que resulta das diferenças intelectuais, pois esses últimos trabalham a favor do desenvolvimento do pensamento. Neste sentido, a história intelectual da psicanálise não é diferente da de outros movimentos. Na literatura, na filosofia houveram brigas e denegrimentos parecidos. Entretanto, adquirimos, pelo próprio trabalho psicanalítico, uma compreensão consciente sobre nossa própria destrutividade. Nosso envolvimento nesses tipos de movimentos dentro da psicanálise significa uma anulação da própria análise pessoal de cada um de nós. É a razão pela qual assistimos hoje dentro da psicanálise uma baixa-estima, uma espécie de depressão e descrença, uma crise iminente em relação à psicanálise. Parece que perdemos a fé no movimento enquanto tal. É uma questão complicada e que requer um tempo mais longo para lidar com ela de modo apropriado.
Percurso: Em seu texto "Pondo em palavras e relatando a Sexualidade", o Sr. faz uma afirmação sobre o uso da voz do analista ser tão importante quanto aquilo mesmo que ele comunica ao paciente. A voz precisa ser flexível o suficiente para ajudar a trazer e a sustentar adequadamente a força das pulsões nas palavras do analista. O Sr. poderia estender-se mais sobre isto?
Bollas: Na vida cotidiana a voz veicula a realidade psíquica da fala. O significante por si só não pode fazer isto! No mundo simbólico, conforme o sentido que Lacan lhe atribui, existe esta veiculação, porém há múltiplos níveis de significação e a voz pode mudar o significante. Por exemplo, frases simples como "sirva-se, por favor" podem provocar muitas coisas. Dependendo da entonação pode significar simplesmente o convite para se servir ou, numa outra - severa e repreendedora - implicaria que "você foi guloso e já se serviu antes mesmo que o convidasse para o fazer". É por isso que digo que a voz é o retorno segundo do significante. A voz humana é a mais importante comunicação da realidade psíquica. Veicula a mentalidade. A mentalidade é a contextualidade do momento. É impossível, é verdade, de registrá-la, isto é, escrever sobre a função, o lugar e a dimensão da voz na situação analítica, entretanto ela é crucial para a apreensão da singularidade desta. Penso que é impossível saber o quão bom analista foi, por exemplo Lacan, a menos que você tenha sido seu analisando. Caso tenha sido, e afirme em seu favor, é porque você foi ajudado pela sua voz, transformado pela sua voz e engajado pela sua voz. Do contrário, ninguém pode comentar sobre a capacidade de um analista na situação clínica a menos que tenha sido o destinatário da sua voz no lugar de analisando. Falo então sobre um aspecto ordinário da vida cotidiana, uma das partes mais importantes da vida humana.
Penso que é de grande valia se pudermos voltar e reconsiderar o caráter da situação da supervisão neste contexto. Refiro-me às dimensões negativas desta situação na qual o paciente está sendo apresentado pelo analista para o grupo de supervisão e onde há, infelizmente, um tipo de estimulação para que o analista faça seu relato em voz padrão ("standard") que é -citando André Green- uma voz morta, a voz da mãe morta. A padronização da voz (Bollas imita aqui a monotonia do som da fala) é certamente mortífera para a própria realidade psíquica.
Percurso: Não só na voz, mas na escrita também existe uma tendência parecida cuja razão se deve em parte à formação padrão do analista. O Sr., por exemplo, chegou a dizer para um paciente que ele era louco, o que é uma fala pouco "standard".
Bollas: Relatei no meu livro um momento no qual dizia para um paciente que ele era um monstro. Acho importante contar o que fazemos, como trabalhamos, assim como quais são os momentos turbulentos que passamos com nossos pacientes. Sei que em publicar tais incidentes acabo me expondo a uma série de atitudes desagradáveis nas quais estou sendo ridicularizado e denegrido pelos colegas porém, no final das contas, penso que é importante para mim, e sem dúvida para outros, saber que fomos honestos, que fomos íntegros em nosso trabalho e que não fizemos algo com o paciente para estar de acordo com um certo padrão de trabalho que foi ditado pela instituição com a qual estamos identificados. O dogma significa o fim da psicanálise. Isto é algo que sempre devemos lembrar. Portanto, proponho pôr fim ao kleinianismo, ao lacanismo etc. É importante estudar os trabalhos desses autores e daqueles que tiveram uma boa leitura deles. Estranha-me o fato de meus comentários serem encarados com tanta surpresa; penso que muitos psicanalistas trabalham assim com seus pacientes mas talvez tenham medo de mostrar seus trabalhos para os outros.
Por outro lado, é lamentável que às vezes os psicanalistas digam ou mostrem isto ao mesmo tempo que surge, em seu discurso, algo como um acting-out (atuação) de um tipo de celebração da singularidade, um apontamento narcísico ("vejam como sou diferente dos demais"). Neste sentido, os três heróis da psicanálise das últimas gerações - Lacan, Bion e Winnicott - exageraram e muito seus idiomas, dando por demais ênfase sobre suas diferenças dos outros a ponto de levarem os membros dos respectivos grupos a atuarem em favor de seus grupos. Fato que os levou a se cindirem de sua própria criatividade idiomática. Os líderes incorporaram a necessidade do grupo para pôr em cena, atuar, o idioma da psicanálise, mas eles vão longe demais e convidam, de uma maneira bastante irônica, a um tipo de marginalização. É preciso que a psicanálise ordinária, comum, seja escrita cada vez mais por psicanalistas proveniente de muitas partes do mundo de modo a torná-la mais acessível e diminuir a angústia imensa em torno da escrita e da discussão da psicanálise.
Percurso: Em seu livro Forças do destino (Imago, 1992) o Sr. aponta para a celebração do analisando pelo analista e vê nisto um dos importantes operadores de uma análise sem deixar de criticar qualquer tipo de gratificação do desejo do analisando. O Sr. poderia nos falar mais sobre isto?
Bollas: A voz humana é afeto no sentido que está carregada de emoções. A questão portanto não é a de conter ou não emoções em nossas vozes mas a do que significa quando não se veicula emoções através das nossas vozes. O assassinato da voz em prol da padronização da psicanálise deve parar. Não temos outra opção pois sempre celebramos um ao outro através das nossas vozes. Não sei se usei no meu livro o seguinte exemplo: trata-se de um caso apresentado na Itália no qual uma criança expressava um ambiente sem vida através de desenhos (objetos inanimados e aparelhos de televisão e vídeo) até desenhar uma aranha. O terapeuta fez um comentário sobre a aranha, porém sem celebrar o fato de que a aranha era a primeira representação da vida dentro da criança. Foi a primeira representação pulsional neste paciente. Eu disse que quando o paciente fez a aranha teria sido importante recebê-lo com um grito de surpresa "aaah... uma aranha" como celebração da instauração de um novo estado pulsional, que trouxe a vida no desenho e na sessão. Não celebrar é falhar na decodificação da significância do gesto da criança naquele contexto. Não falamos com nossos filhos com vozes mortas mas dirigimo-nos a eles com nossos afetos. Penso que isto vale também para os adultos quando estamos lhes respondendo através das nossas vozes. Por exemplo, quando deparamo-nos com a resistência de pacientes inteligentes que desfazem nosso esforço interpretativo podemos lhes dizer "mais uma vez você está desmantelando a interpretação e me leva sentir um certo cansaço dentro de mim". É possível dizer isto para o paciente. Mas quando se trata de uma desconstrução particularmente brilhante por parte do paciente é importante elogiar e dizer com surpresa " ah... você ganhou, você realmente conseguiu me tapear, fez um trabalho brilhante, mostrou o quanto sou bobo". Para além da forma viva de comunicação percebe-se aqui a importância do conteúdo por meio do qual assinala-se ao paciente como ele obtém prazer em manipular e triunfar sobre o analista e outras coisas. Após a partida do paciente é muito importante para mim refletir sobre a pós-vida da sessão no paciente. Eu me pergunto se ele está tendo reflexões animadoras e confortantes sobre a hora que passamos juntos, ou se carrega dentro dele algo como um objeto maligno de forma a sentir-se destruído e redestruído pelo horrível comentário lançado pelo analista e que o mata a cada momento que passa. Num outro caso, pode parecer que algo muito importante lhe foi dito, atingindo um sítio que nele é íntegro porém a forma da comunicação não lhe permitiu viver e conciliar-se com ela.
Percurso: Como diferenciar sua concepção do uso que o paciente faz do analista enquanto objeto daquele da identificação projetiva, utilizado pelos kleinianos?
Bollas: O objeto kleiniano baseia-se sobre o modelo do corpo da mãe, ou seus seios, de modo que quando se trata de projeção, o conceito kleiniano do uso de objeto é um uso transferencial. Eles sempre pensam sobre o que o paciente coloca dentro da mãe, ou dentro do analista na identificação projetiva. Portanto o uso de objeto é considerado por eles nesta dimensão particular de pegar uma parte do seu self e colocá-la dentro do objeto. É um modo de comunicação. Esta descoberta é de extrema importância. A teoria kleiniana da identificação projetiva e a maneira como foi por eles elaborada é uma das maiores descobertas na história intelectual. O modo profundo e sofisticado pelo qual a descrição do seu funcionamento foi demonstrada, articulada e refinada é uma das grandes conquistas do nosso tempo. Minha concepção do uso do objeto é diferente. A dos kleinianos tem a ver com uma atuação de uma relação entre o self e o outro, ou o bebê e sua mãe, que se manifesta na sessão. Bion moveu as coisas um pouco mais adiante quando introduziu as funções interagindo entre si dentro da personalidade, apontando também para a existência de fatores que determinam tais funções pela interação entre eles. Com isto Bion deu um passo em direção a uma conceitualização mais genérica. Minha visão é de que a criança, o bebê e especialmente o adulto usam todos os objetos do mundo como um tipo de léxico para a liberação do self, para a elaboração da inteligência das formas da personalidade, e portanto, trata-se de um modo de usar os objetos que possa liberar o idioma singular de cada pessoa.
Eu incluo qualquer objeto através do qual seja possível obter a evidência de certos padrões peculiares da organização da vida. Imaginemos que tivéssemos à nossa disposição um museu onde as primeiras salas abrigassem os artigos e objetos da infância de um certo indivíduo de forma que estivessem penduradas na parede obras contendo partes do corpo da mãe que constituem os interesses eróticos, e que são também fontes de angústia para a criança. Estas salas conteriam outros objetos como brinquedos, objetos inanimados e animais que promovem o desenvolvimento da criança, além dos quadros das representações dos objetos internos da criança. E assim, passando de uma ala para outra presenciaríamos uma exposição que traçaria sucessivamente os estágios da vida humana. Seria um museu que requereria dias para ser explorado. Imaginem ser visitantes deste museu e que vocês estão assistindo a um movimento idiomático daquele indivíduo através de todas as formações potenciais dos objetos vivos - um tipo de assinatura estética daquele sujeito. É isto que entendo por uso de objeto: usamos objetos para expressar o self no plano do inconsciente, e isto não passa pela consciência. Da mesma forma, quando alguém entra numa livraria, coloca-se, enquanto sujeito, através daquele livro que abre e do tempo que lhe dedica. Se tivéssemos um jeito de obter um historial dessa atividade (visita à livraria) de um certo indivíduo ao longo de 5 anos, obteríamos - novamente, uma antropologia - a cultura privada e singular de interesse e uso daquela pessoa. É um exemplo muito superficial já que não inclui uma atenção mais profunda aos modos de uso do objeto como, por exemplo, qual livro o indivíduo de fato comprou, o que escolheu para ler, o que apreende e o que não apreende nele porque, como disse Blanchot, durante a vida e o uso dos objetos há, ao mesmo tempo, um movimento do nada (nothingness) que sempre é o companheiro das pulsões de vida. Se continuarmos com esta metáfora veremos uma seleção muito particular de objetos, um uso muito particular dos objetos selecionados e um não-uso também muito particular desses objetos. Penso que nossos pacientes nos usam desta maneira. Entretanto, somos objetos de uso muito mais complexo, de forma que o manejo deste uso assemelha-se às infinitas modalidades com as quais se usa um instrumento numa orquestra sinfônica, que é um modo de se pensar e se expressar enquanto sujeito. É o que o paciente faz com o analista, e este, por sua vez, traz uma resposta, profundamente inconsciente, ao idioma do paciente. Por ser inconsciente, nada sabemos ou compreendemos sobre ela. Sabemos que ela existe, sentimo-la como se fosse uma impressão (marca) deixada em nós, e lembrem-se que Freud sempre falou sobre as impressões da infância - isto é muito importante pois nossos pacientes imprimem algo em nós. Vejam então que a concepção que trago do uso de objeto é muito diferente da identificação projetiva nos kleinianos. É interessante pensar na ligação e na diferença entre tais concepções. Neste sentido posso contar uma historinha: minha esposa mexeu no ano passado nas monografias que escrevi durante minha graduação, há mais de vinte anos, e me chamou atenção para o fato de que a teoria das formas que venho apresentando atualmente encontra-se embrionária naqueles trabalhos. Ela me disse "você já disse isto, está se repetindo"!
Percurso: É o seu idioma...
Bollas: É o meu idioma! Voltando à teoria da identificação projetiva, ela ignora justamente a integridade dos objetos, aquilo que chamo de integridade processual do objeto, de forma que o objeto tenha um efeito particular sobre nós e não que a gente projete partes nossas dentro dele sendo ele um continente para tais projeções. As teorias se aproximam porque nenhuma identificação projetiva pode ser bem sucedida a menos que o continente seja apto para conter as projeções - o que supõe que aí exista uma compreensão inconsciente da integridade do objeto. Porém, neste caso, a integridade do objeto não é um fator subseqüente do efeito sobre o self: durante a vida lidamos com objetos que têm um efeito evocativo sobre nós, que têm um efeito processual sobre nós, e isto é importante por permitir, como eu disse numa palestra, irmos para além da posição depressiva.
Percurso: A teoria que o Sr. propõe é centrada no self. O Sr. poderia definir, em poucas palavras, o que é o self?
Bollas: Escrevi um ensaio chamado "O que é esta coisa chamada self?" que encontra-se em meu último livro Cracking-up. Como vocês sabem é uma questão muito difícil de responder. Penso que temos uma percepção endopsíquica sobre o nosso idioma que significa que não podemos descrever nosso self mas podemos sentir e ter alguma noção sobre o fato que somos peculiares, que somos guiados por uma inteligência que, no nível inconsciente, toma conta de nós. Portanto, há um sentido endopsíquico do próprio self. Novamente a ênfase é sobre o sentido do self; acredito na existência deste sentido do self - sentido endopsíquico - o qual é particular ao homem. Este termo, sentido (sense), foi usado durante séculos e no entanto não me parece perder seu valor de uso porque tem justamente, do meu ponto de vista, a função de tentar nomear algo que é inominável. É uma das palavras que têm vida porque nunca pode haver uma definição para elas. Caso encontrássemos uma tal definição perderíamos seu valor de uso.
Percurso: O Sr. criou uma série de conceitos em relação à origem do self, entre os quais a pulsão de destino. Qual seria a relação entre esta pulsão, a da destrutividade de Winnicott e o Trieb de Freud?
Bollas: Existe uma relação nítida entre esses conceitos. Penso que o Trieb, a pulsão freudiana, é impiedosa (ruthless), é implacável quanto à escolha: o objeto pode ser ou escolhido ou ignorado por ela, não há meio caminho. A teoria de Winnicott sobre o uso de objeto é igualmente uma teoria que fala da implacabilidade, isto é, o objeto deve ser usado de maneira a possibilitar que o self seja verdadeiro consigo mesmo. A pulsão de destino é uma teoria um pouco mais complexa. Trata-se da tentativa de identificar as necessidades e o prazer da própria representação. Isto acarreta a urgência de se auto-articular. É a razão pela qual esta pulsão deve ser igualmente implacável, não se curvando à qualquer acordo ou compromisso; ela é inconciliável. Novamente, entramos na livraria e passamos pelas estantes onde se encontram os livros de Jane Austin, Brontes, Dickens... não vamos ler um pouco de cada um dos autores ou vamos decidir que hoje não daremos uma olhada neste ou naquele livro. No entanto, não nos desculparemos para com os objetos que não vamos usar, mas nos dirigiremos para o lugar onde temos, inconscientemente, um interesse por um certo objeto que possa ser encontrado. Na vida sexual, quando se pensa sobre a atração humana, a escolha deve ser sempre implacável, isto é, o homem escolhe uma mulher ou uma mulher escolhe um homem em relação ao qual se vê atraída, compelida - um lugar onde surge uma verdadeira paixão. Quando a escolha do objeto não é implacável (ou impiedosa) mas feita de acordo com a sensação de que o cônjuge é uma boa pessoa, acreditando que o amor aparecerá com o passar do tempo eu digo "talvez", mas na maior parte das vezes isto não ocorre porque a implacabilidade é vital para a realização do idioma do self - implacabilidade que caracteriza a pulsão freudiana, o uso do objeto, segundo Winnicott, e segundo a minha pulsão de destino.
Percurso: Qual seria a substância última no homem desta positividade do gesto espontâneo, do verdadeiro self? A espontaneidade é algo fenomenológico ou...
Bollas: Não creio numa substância para a espontaneidade do verdadeiro self. O que existe aí é o movimento. Se quisermos ver aí uma substância, ela está em movimento. No esboço de psicanálise Freud disse que a libido é mobilidade de forma, que estamos falando de movimentos, e não de espaços. É o movimento que rege o verdadeiro self. Mas quando vocês me perguntam sobre seu núcleo, de onde vem, qual é seu caráter original, eu penso que é muito difícil definir. A analogia que uso para isto é novamente a inteligência das formas; o idioma é uma inteligência. De onde surge então esta inteligência? Trata-se obviamente da genética, em parte, mas a genética dimensiona apenas um código na medida que se mistura com a realidade, na medida que se transforma pela vivência com os pais e na medida que nela abriga mentalidades. Acredito portanto na genética enquanto predisposição livre para o código humano com o qual cada indivíduo chega ao mundo e isto é uma lógica das formas ou melhor um conjunto de teorias a partir das quais as formas são determinadas. Penso que é justamente este fator que foi negligenciado nas construções teóricas de Lacan porque ele não pôde ver qual é a base da unidade mãe-bebê. Ele disse que esta unidade é uma ilusão, que ela não existe. Por isso ele vê apenas um self em pedaços no estágio do espelho, de forma que supõe uma alienação básica do sujeito a perpetuar-se também no decorrer de sua evolução etc. Concordo com quase tudo que ele diz até o ponto onde eu percebo uma comunicação inconsciente profunda entre a mãe e o bebê que ocorre no nível do encontro entre as formas de um com as do outro. É esta inteligência, é este caráter que não foi incluído nem no modelo conceitual de Lacan e nem em nenhum outro e é esta omissão que é preciso corrigir.
1Autor de uma vasta obra no campo psicanalítico, nas ciências humanas e nas artes, além de ser pintor, cujas imagens ilustram capas de livros. Fez sua formação psicanalítica na Sociedade Britânica de Psicanálise, da qual é membro. Hoje vive em Londres.