Por Fernanda M. L. Vendramini
Com grande curiosidade iniciei a leitura do livro “Eu me lembro”, de Selton Mello, primeiro porque é um ator e diretor da minha geração. Criança, assistindo às novelas em casa todos os dias, naturalmente passava a admirar aquela outra criança, que estava “dentro” da televisão, atuando com tanta propriedade.
E a vida passa, e continuei a observar, em meio a tantos novos atores e diretores, bem como ao dia a dia atribulado e tantas responsabilidades que surgem no crescimento de um ser humano, que Selton Mello aparecia... sumia... e uma discrição rara da própria vida, sem holofotes.
Não sei o que esperava ao ler o livro... penso que fui sem expectativas... e me surpreendo a cada relato, lembrança, desabafo, revelações...
Quantas coisas Selton diz sobre ele que me parecia escrever sobre mim... de meus sentimentos, impressões, autoconhecimento... muita identificação da minha parte em seus relatos, apesar de termos trajetórias de vida completamente diferentes. Comprovação de que, apesar de sermos tão diferentes uns dos outros, muitas coisas podemos ter em comum.
E qual não foi minha surpresa a cada momento em que Selton dizia sobre a magia, técnica, formas de atuar e dirigir, e meus insights sobre a atividade de psicanalista!?
Ainda não me vejo como psicanalista, apesar de ouvir de vários facilitadores da EPP que já somos, que já atuamos desta forma, mas é certo que, diante destas impressões que fui tendo ao ler os relatos de Selton, fui dando razão às falas dos orientadores...
Não tenho ainda experiência na Psicanálise, mas cheguei à conclusão que existe muito em comum entre esta e a arte, a arte de atuar e de dirigir (seja uma peça, novela, série, filme... Selton já tem muito cabedal como diretor).
São tantos trechos que poderiam aqui ser transcritos e os psicanalistas lerem e pensarem: estão falando de Psicanálise? De uma sessão de terapia? Mas entendo que seria demasiado transcrever trechos sem comentar o que, de fato, parece ser mais importante para tentar demonstrar a similaridade entre a arte de atuar/dirigir e a psicanálise.
Selton é da experiência e opinião de que “atuar é, na essência, algo simples”, e mais do que isto, leve, e que se tiver dor envolvida, vive-se a dor daquele momento e fim, vida que segue. Fala do “aqui e agora”, e que muitas vezes o ator se prepara tanto que não tem espaço para o acaso, não sabe lidar com o imprevisto. Penso que isto é real para a função do analista, de vivenciar cada sessão única como ela é, com atenção flutuante, de forma leve, mesmo que se tenha dor envolvida, e acabada aquela sessão, outra virá, talvez sem dor.
Para Wilfred Bion e outros psicanalistas, o silêncio é importante, ele também é uma fala, tem um significado. Para Selton as pausas são interessantes... é onde, muitas vezes, se consegue ver o que o personagem pensa, é tocar o que está por trás das palavras e também da ausência delas.
Algo que me chamou muito a atenção na psicanálise é a importância e necessidade de se ter um cabedal cultural cada vez maior, para que o analista possa ser a cada dia mais assertivo na troca com o analisando, lhe dando exemplos e modelos de aproximação daquilo que diz e sente. É como se o analista passasse a prestar atenção 24 horas em todas as formas de cultura, no dia a dia, em perceber detalhes interessantes em tudo, até mesmo num “meme” de rede social. E não é que Selton também diz isto sobre a arte de atuar?! O ator, em sua visão, é uma antena, que deve estar atento ao que passa na TV, rede social, rádio, na feira, mercado, na rua, na farmácia, pois “tudo é alimento, tudo pode e deve ser usado depois”.
Quem já fez ou faz análise vivencia a cada sessão o final de não ter resposta pronta, a angústia de ir embora para pensar, em procurar dentro de si um desenvolvimento e, quem sabe, uma conclusão temporária... sim, temporária, porque estamos sempre em transformação. E Selton, novamente neste ponto, diz que “atuar é quase tentar ser invisível”, que o ator “não deve entregar tudo pronto. O espectador conclui o raciocínio.” Tão psicanalítico tudo isto.
Na Psicanálise existe muita discussão sobre a técnica a ser seguida, se é necessária mesmo, se é importante, se é possível misturar uma com a outra, e se o foco for a técnica, onde fica a emoção, o sentimento. Pois bem, em determinado trecho do livro, Pedro Paulo Rangel pergunta a Selton o que prefere, o que importa, a técnica ou a emoção? E, mais uma vez, a resposta dele em atuar se coaduna com a psicanálise: “acho que as duas coisas”. A emoção está ali, presente, latente, manifesta, e a técnica vai se desenvolvendo, e cada um vai criando a sua, trabalhando, observando a si mesmo, observando os colegas, estudando sozinho ou em bando (como dizem os psicanalistas).
Atuar e Psicanálise tão similares, o que me faz concluir que ambas são artes, de ouvir, de ter fé, observar o outro e a si mesmo, transformar, e se encantar com a beleza das artes em todas as suas formas.